CAPELAS, CAPELANIAS E DECORAÇÕES CONFESSIONAIS
EM UNIDADES HOSPITALARES E CENTROS DE SAÚDE DA REDE PÚBLICA
Responsáveis pela assistência religiosa a doentes internados em hospitais do Serviço Nacional de Saúde, as (sempre, sempre e ainda sempre católicas) capelanias hospitalares foram, muito recentemente, objecto de um projecto de regulamentação elaborado pela Secretaria de Estado da Saúde; iniciativa que colheu parecer favorável da Comissão de Liberdade Religiosa (voto contra do representante da Aliança Evangélica) e da Coordenação (católica) da Capelanias Hospitalares…
Que vai acontecer então? Vão ser mantidas em actividade – e até regulamentadas – as actuais capelanias hospitalares (católicas) «funcionalizadas» (assalariadas) pelo Estado ???
É que, embora a Constituição da República Portuguesa determine que “ninguém pode ser (…) privado de direitos (…) por causa das suas convicções ou prática religiosa” e a Lei da Liberdade Religiosa também estabeleça idêntico direito de acesso de todas as confissões a prestar essa assistência espiritual, ao especificar que “o internamento em hospitais (…) não impede o exercício da liberdade religiosa e, nomeadamente, do direito à assistência religiosa e à prática dos actos de culto”, a Concordata de 2004 só compromete a República Portuguesa a “garantir à Igreja Católica o livre exercício da assistência religiosa católica às pessoas que, por motivo de internamento em estabelecimento de saúde (…), estejam impedidas de exercer, em condições normais, o direito de liberdade religiosa e assim o solicitem” – não a pagar essa assistência como se da prestação de um «serviço público» se tratasse !!!
Paralelamente a essa situação de manifesta – e ilegal – disparidade na prestação de apoio espiritual a doentes católicos e não católicos dos Serviços Públicos de Saúde, existem ainda, no âmbito desses mesmos serviços, duas outras situações aberrantes sob o ponto de vista da Laicidade do Estado e do Direito à Liberdade Religiosa dos Cidadãos, a saber: (1) as «decorações confessionais» (também católicas) que marcam muitos espaços das instalações (hospitais, centros de saúde, etc.) dependentes do Ministério da Saúde e (2) os locais hospitalares destinados ao recolhimento espiritual dos doentes internados (e seus próximos) que, de espaços «confessionalmente neutros», frequentemente acabaram transfigurados em «capelas católicas» assumidas em exclusividade confessional.
Foi por esses motivos que a associação cívica República e Laicidade entendeu por bem endereçar ao Sr. Ministro da Saúde a seguinte carta/exposição:
Ex.mo Senhor Ministro da Saúde da República Portuguesa,
Senhor Professor António Correia da Campos
Av. João Crisóstomo, 9, 6º -1049-062 Lisboa [gms@ms.gov.pt]
07-06-2007
Ex.mo Senhor Ministro,
Podemos sistematizá-las em três grandes grupos:
1. A presença de símbolos religiosos católicos em muitas instalações dos serviços públicos de saúde – hospitais, centros de saúde, etc. –, quer em átrios, corredores, salas de espera e espaços de circulação, quer em salas de consulta e tratamentos, quer ainda em quartos e enfermarias de internamento. Deve notar-se que nem sempre se trata de situações passíveis de uma qualquer «justificação» histórico/cultural, já que muitos dos casos que nos são reportados se referem a instalações de criação e construção muito recente.
2. O manifesto desequilíbrio existente no acesso às instalações hospitalares do Serviço Nacional de Saúde, conforme se trate de agentes religiosos católicos (padres, freiras, etc.) e de elementos de outras confissões religiosas que aí também são chamados a desenvolver intervenção confessional. Mais concretamente, o estatuto de privilégio de que ainda gozam os capelães hospitalares católicos – um estatuto oficial de reconhecimento e funcionalização que, sem sustentação na Concordata e em desrespeito à Lei da Liberdade Religiosa, lhes está atribuído em exclusividade – afigura-se
3. O uso notoriamente abusivo, por parte de agentes da confissão religiosa dominante no país, dos espaços existentes nos hospitais para recolhimento espiritual e assistência religiosa, constatando-se, com demasiada frequência, que locais inicialmente previstos como confessionalmente neutros, depois de « consagrados » pelo capelão católico do hospital às práticas da sua confissão, uma vez equipados com as respectivas alfaias e decorados com a sua iconografia, acabaram convertidos em «capelas» exclusivas do culto católico e, desse jeito, arredados do uso generalizado (universal) para que tinham sido inicialmente concebidos e construídos.
Relativamente à primeira dessas situações, entendemos que seria muito oportuno e conveniente o Ministério da Saúde fazer circular pelos diferentes serviços que estão sob a sua tutela um documento esclarecedor da neutralidade confessional que, constitucionalmente, deve caracterizar todos os espaços públicos e, designadamente, os espaços adstritos ao Serviço Nacional de Saúde. Paralelamente, poderiam também ser dadas instruções claras aos serviços de manutenção e inspecção das instalações sob tutela do Ministério da Saúde no sentido de se providenciar a melhor adequação daqueles espaços de trabalho aos condicionalismos de aconfessionalidade a que estão sujeitos.
Relativamente à segunda dessas situações – e atendendo ao facto de, no Ministério da Saúde, estar presentemente em discussão um projecto de normativo regulamentador da assistência espiritual e religiosa nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde –, gostaríamos de deixar aqui as seguintes considerações:
1. O Ministério da Saúde não deveria conceder às administrações hospitalares uma amplitude excessiva no âmbito da capacidade de regulamentação local da assistência religiosa e espiritual, de forma a não transigir, nem com a multiplicidade e disparidade de regimes, nem com arbitrariedades locais.
2. O princípio estruturante da regulação de qualquer tipo de assistência espiritual e religiosa nos hospitais públicos deveria assentar unicamente na manifestação de uma vontade de receber esse tipo de apoio livremente expressa pelo utente ou, em caso de incapacidade, por quem legalmente se lhe possa substituir na prática desse acto. Concretamente, em condição de internamento numa unidade hospitalar, todos os utentes deveriam ser informados da possibilidade de solicitar amparo espiritual por parte da sua confissão religiosa, sendo que essa assistência só poderia ser prestada a quem expressamente a solicitasse e que seria frontalmente vedado oferecer auxílio religioso a utentes que o não tivessem previamente solicitado. Apenas seguindo este princípio se consegue articular o respeito pelas normas constitucionais que regulam a privacidade individual em matéria religiosa, a liberdade de consciência e de religião, bem
3. Porque a assistência religiosa constitui um « serviço » directamente prestado pelas confissões religiosas aos seus crentes e não ao Estado, não faz qualquer sentido que seja o Estado a remunerar os ministros do culto que prestam essa assistência espiritual, ainda que o façam em hospitais públicos.
Relativamente à terceira das questões acima apontadas, deixamos aqui sugerido que o Ministério da Saúde mande proceder ao levantamento e avaliação sistemática das muitas situações concretas existentes no país e as faça rectificar, por forma a assegurar que os espaços específicos para assistência religiosa ou espiritual localizados em instalações hospitalares não estão apropriados, em exclusividade, por culto religioso algum, assumindo (ou reassumindo) antes uma forma adaptável às práticas de qualquer confissão religiosa e podendo mesmo servir para o recolhimento emocional de quem não tem qualquer religião.
com os nossos melhores cumprimentos,
Luis Manuel Mateus (Presidente da Direcção)
acesso a doc/R&L (pdf)