Senhor Provedor do Leitor do jornal Publico,
O jornal Publico iniciou, no dia 17 de Dezembro, uma série de artigos sobre a «proibição do natal» – uma suposta campanha planetária contra os festejos de natal – que teve sequência nos dias 22 e 24 de Dezembro, e à qual o unico contraponto foi a «carta de leitor» da ARL no dia 21 de Dezembro e o artigo de opinião de Rui Tavares no dia 23 de Dezembro. Ao longo desta série de artigos registaram-se várias situações que consideramos que comprometem a habitual qualidade e isenção jornalística do Publico, e que foram mais próprias da informação agressiva e tendenciosa veiculada nos mesmos dias pela imprensa do Vaticano e pelos tablóides britânicos. Vimos portanto, por este meio, colocar-lhe algumas questões concretas que gostaríamos de ver respondidas.
1. A notícia «Quando festejar o Natal é proibido» (17/12) – a primeira da polémica – inicia-se com a seguinte frase: «Festas de Natal proibidas numa escola em Saragoça (Espanha) para não ofender crentes não-cristãos, empresas que não querem festas natalícias no Reino Unido, árvores de Natal retiradas e depois recolocadas no aeroporto de Seattle (EUA) na sequência de polémicas sobre as decorações». Refira-se, para começar, que nenhuma destas três situações corresponderia a uma «proibição» (no sentido em que uma lei estatal proíbe). (i) A primeira trata de uma decisão de não realizar uma festa, por razões de espaço (no ano anterior, muitos pais tinham ficado à porta) e pedagógicas (a festa não fazia parte do plano de actividades e o tempo curricular é precioso). Os professores da escola negam a razão apresentada pela imprensa (o cuidado de «não ofender crentes não-cristãos»), e seria relevante para a contextualização da notícia informar que a decisão foi tomada pela assembleia de pais, que o natal foi celebrado nas aulas e que a escola esteve decorada com motivos natalícios, e que existe uma página na internete(1) em que a direcção da escola se queixa da maneira como um jornal local começou a difundir «mentiras»(sic) por razões «partidárias»(sic), «mentiras» que depois chegaram aos media espanhóis de âmbito nacional e à imprensa internacional (incluindo o Publico). (ii) A segunda situação é concretizada no corpo do texto quando se cita o caso de «uma importante empresa que ordenou aos seus funcionários que não desejassem – Feliz Natal – mas sim – Boas Festas – » e se afirma que «um inquérito feito em Novembro revelou que três empresários britânicos em cada quatro proibiram decorações alusivas ao Natal». Não somos informados de qual é a importante empresa, e a afirmação de que as decorações foram proibidas é falsa: o inquérito perguntava se proibiriam, não se o tinham feito(2). (iii) Finalmente, o caso de Seattle é um mal entendido, e também não seria uma proibição, mas uma cortesia ao rabino referido. A concluir, a nota refere a publicação, no saite da Associação Republica e Laicidade, de um texto crítico de uma peça de Natal, onde se expressavam duvidas e faziam perguntas. Mais uma vez, não se trata de uma proibição. Portanto, e ao contrário do que o título anuncia, não há uma unica proibição de festejar o Natal em todo o artigo. Atendendo aos factos, terá sido correcta a utilização do verbo «proibir» (num total de quatro vezes, incluindo o título)?
2. Ainda na notícia «Quando festejar o Natal é proibido» (17/12) afirma-se que «a Associação Republica e Laicidade resolveu protestar com a lembrança de factos históricos», a propósito da peça de teatro criticada(3) pela ARL em que as personagens – o «anjo Gabriel», «Maria» e «José», entre outros – dialogavam sobre o «nascimento de Jesus». No livro de estilo do Publico (concretamente, na secção «Princípios e normas de conduta profissional») afirma-se que é norma o «não envolvimento publico em tomadas de posição de carácter político , comercial, religioso, militar, clubístico ou outras que, de algum modo, comprometam a imagem de independência do PÃ?BLICO e dos seus jornalistas». Ao referir-se ao «nascimento de Jesus» e ao diálogo com o «anjo Gabriel» como «factos históricos» (num artigo noticioso), não se terá o Publico comprometido com dogmas da fé católica, dificultando que tenha uma «imagem de independência religiosa»?
3. Relativamente às notícias da edição do dia 22 de Dezembro (« – Património comum – envolto em polémica», «Elemento do espírito, da cultura e da arte, diz o Papa» e «Alguns casos da controvérsia», que cobrem a totalidade das páginas 2 e 3) é estranhíssimo que o «movimento planetário» a que se atribui o «zelo religiosamente correcto» que se pretende descrever não tenha sido contactado, numa das suas encarnações, para exercer o seu direito ao contraditório. Efectivamente, em nenhum ponto dos artigos referidos se exprime directamente qualquer ponto de vista daqueles a quem se atribui a «rejeição de símbolos religiosos e natalícios». As duas personalidades entrevistadas (Alfredo Teixeira e Paulo Mendes Pinto) encontram-se, assumidamente, do mesmo lado da polémica: a que não rejeita esses símbolos. O mesmo pode ser dito dos quatro artigos de opinião da edição desse dia (incluindo o editorial): «Natal e hipocrisia» (editorial de Nuno Pacheco), «Ofensas de Natal» (Constança Cunha e Sá), «A censura – catequística – » (Esther Mucznik) e «Milhões de polícias» (Vasco Pulido Valente). Porque será que as pessoas ou organizações por detrás da «terrível campanha antinatal» não foram contactadas? Será que isso não se deve ao facto simples de que a dita campanha efectivamente não existe?
4. Na notícia «Elemento do espírito, da cultura e da arte, diz o Papa», cita-se o Papa Joseph Ratzinger, um articulista do L´Osservatore Romano, um ministro italiano e deputados anónimos do parlamento italiano. Todas as citações vão no mesmo sentido, pois volta a não ser citada uma unica pessoa que defenda os episódios referidos (não construção de presépios e «supressão» de cânticos sobre «Jesus»). Ficam novamente por explicar os pontos de vista daqueles que estarão por detrás da alegada «campanha de proibição do Natal». Será que as suas acções e intenções estarão a ser escondidas, mal apresentadas ou distorcidas? E porquê?
5. Na notícia «Alguns casos da controvérsia – Prémio Herodes para presépio deitado fora» (22/12), refere-se o caso de uma directora de escola da localidade de Mijas (Málaga, Espanha) que colocou no lixo um presépio. As razões apresentadas pela directora são sumarizadas na frase «não são permitidos símbolos religiosos». Todo o texto restante do artigo cita sucessivamente o «Fórum Andaluz da Família», a «Associação Profissional de Pro-fessores de Religião em Centros Publicos da Andaluzia», a «Associação de pais católicos de Málaga» e o professor de religião da escola, quatro testemunhos que concorrem para o mesmo lado da polémica. Não teria sido mais equilibrado citar alguém que apoiasse a directora da escola, por exemplo a Junta da Andaluzia, que é o órgão político da região e que não viu motivos para destituir a professora?
6. Na notícia «Alguns casos da controvérsia – Intervalo de Inverno, diz a Câmara» (22/12), afirma-se que «há oito anos (â?¦) a câmara de Birmingham (â?¦) decidiu mesmo renomear o tempo natalício como – winterval – – ou intervalo de Inverno». A informação é parcialmente correcta, mas falta acrescentar(4) que se tratou de uma campanha para atrair negócios ao centro da cidade, que se estendeu durante dois meses – de Novembro a Janeiro – e que durante o Natal a câmara de Birmingham teve uma faixa com os dizeres «Feliz Natal» («Merry Christmas») na fachada. Na mesma notícia, citam-se dois ministros britânicos, o Conselho Mundial de Igrejas, um bispo anglicano, um jornalista e um conjunto de bispos. Todas estas pessoas ou entidades estão do mesmo lado da polémica. Novamente, porque será que não foi possível encontrar pessoas que defendessem pontos de vista diferentes?
7. No livro de estilo do Publico (concretamente, na secção «Os factos e a opinião») afirma-se que «não é admissível a utilização de uma linguagem panfletária ou insultuosa». Gostaríamos de saber se as expressões acumuladas por Frei Bento Domingues, nos cinco primeiros parágrafos do seu artigo de 24/12, não serão insultuosas: começando pelo título («Estupidos sem Fronteiras», uma expressão usada ainda mais duas vezes no corpo do artigo), continuando pela «importante colecção de cretinos» e pela «burrice mais aguda», e ainda pela «manifesta tolice» e pela «quadrilha de idiotas»? Quanto aos destinatários, embora Bento Domingues não seja muito explícito, refere que «Pelo que A. Marujo mostrou (Publico, 17/12/2006), os Estupidos sem Fronteiras não são apenas os nossos vizinhos (â?¦) Segundo ouvi, também em Portugal, algumas escolas não escaparam a essa intolerância». Tendo em conta que o artigo de A. Marujo no dia 17/12 referia uma unica circunstância portuguesa – a que envolvia a ARL – devemos entender que Bento Domingues nos quis chamar «estupidos», «cretinos» e «idiotas»? E serão este tipo de expressões ofensivas aceitáveis no Publico?
A terminar, queremos ainda informar de que enviámos ao Publico, no início deste mês, com um pedido de publicação em que se invocava o direito de resposta, um artigo de opinião. Fizemo-lo porque, na edição de 22 de Dezembro, fomos interpelados directamente por dois colunistas do Publico (Esther Mucznik e Constança Cunha e Sá), citados na notícia da página 2, e associados a uma mega-campanha internacional que na nossa opinião tem uma parte muito grande de fabricação. Até ao momento, o nosso artigo não foi publicado.
Senhor Provedor, receba os nossos melhores cumprimentos e votos de bom trabalho.
Ricardo Alves
(Secretário da Direcção da Associação Republica e Laicidade)
Associação Republica e Laicidade
Rua Cidade de Bolama, nº15, 7ºdto.
1800-077 Lisboa
(12/1/2007)


(1) Página dos professores da escola Hilarión Gimeno (Saragoça):
http://www.educa.aragob.es/cphgizar/web1/escrito_apa.htm

(2) Este facto pode ser confirmado num excelente artigo do The Guardian, onde são desmontados muitos outros mitos da «guerra contra o Natal»:
http://www.guardian.co.uk/christmas2006/story/0,,1967367,00.html

(3) Pode-se apreciar essa crítica em:
https://www.laicidade.org/2006/12/14/auto-de-natal-na-escola-publica/
Pode-se ler a peça teatral em:
https://www.laicidade.org/wp-content/uploads/2006/12/professores-1-2-eb-2006-12.pdf

(4) O que pode ser confirmado lendo o The Guardian:
http://www.guardian.co.uk/christmas2006/story/0,,1967367,00.html