Maria Velleda nasceu em Faro em 1871 numa família burguesa. Teve uma educação cuidada e convivia, desde cedo com livros, jornais e teatro e, por essa razão, aos 15 anos, decidiu conquistar autonomia de vida. Dedicou-se ao ensino, dando explicações particulares. Em 1896 vem para Lisboa, com um filho que adoptara cinco anos antes. Exerceu o professorado em Odivelas, Ferreira do Alentejo, Serpa. Publicista de excelentes recursos, colaborou em jornais locais (na lista dos quais encontramos O Círculo das Caldas), publicou textos de intervenção e peças de teatro. Tornou-se uma figura cimeira do feminismo e enfileirou no republicanismo. Tem uma larga participação em ambos os movimentos, entre 1905 e 1921. Usou o nome de guerra de Maria Velleda. (texto retirado de A Primeira República) No dia 8 de Março, partilhamos o artigo que escreveu a propósito dos feriados religiosos nas escolas em 1909.
Tenho abordado por vezes este assunto, e continuo insistindo na propaganda que me impuz, contra a profunda incoerência de se darem feriados religiosos “em escolas sem religião”. É a questão de “bater sempre a cabeça do prego” como disse o sr. Theophilo Braga, referindo-se à necessidade de repisar sem desânimo o mesmo assunto , até se atingir o fim alvejado.
Se há coisa que me indisponha e me desgoste, é a subserviencia como a maior parte da gente se amolda à rotina, minguada de forças e de energia para esmagar o preconceito.
Ora, os feriados religiosos, caracteristicamente rotineiros e opostos ao ideal pelo qual se norteia a escola laica, representam uma contradição que se deve combater e que deve acabar.
Duas ou três pessoas entre muitas com quem tenho trocado impressões a este respeito, respondem-me – que os feriados religiosos não se podem eliminar, porque as famílias dos alunos que frequentam as nossas escolas podem ser católicas e reprovam a inovação.
A isto respondo –que nós não temos obrigação de contentar as crenças religiosas das famílias dos nossos alunos, pela mesma razão de que também não nos propomos a combater-lhas – mas tão somente tornarmos coerente o regulamento escolar-laico. De resto, quando um pai manda um filho para uma escola republicana, sabe perfeitamente que ele vai para um a escola “sem Deus”, e não deve estranhar que os “dias santos” sejam abolidos, desde que se aboliu a religião que os decretou.
Outra objecção: “que os pais aproveitam os dias santificados para irem passear com os seus filhos; que estes, certamente faltariam à escola”, etc., etc.
Ora essa…pois não!
Na sua maior parte, as crianças que frequentam as escolas republicanas são filhos de proletários, que não têm dinheiro para comer, quanto mais para passear nos dias santos!
Eles importam-se lá com as imposições de Roma?!
Um dia santo é um dia como outro qualquer: o pedreiro não deixa de arriscar a sua vida sobre as quatro tábuas de um andaime; a ovarina não deixa de entoar a sua melopeia pelas ruas da cidade; o cauteleiro de apregoar a sua mercadoria; o trabalhador de fazer por ganhar o seu jornal.
E mal deles se assim não fôra!
Como se os pobres, que tantas vezes deixam de mandar os filhos à escola por não lhes poderem comprar botas, dispusessem de tempo e dinheiro para os levar a passeio!
Não vejo razão nenhuma, absolutamente nenhuma que sirva de justificação para acatarmos os feriados dos católicos. Bom fez a França revolucionária quando acabou com eles!
Dizia-me há dias um respeitável cavalheiro que, sendo republicano e livre pensador, não está inteiramente de acordo comigo, sobre o assunto que venho explanando:
“ O que V. pretende, é lógico que há-de vir a suceder, creia. É uma questão de tempo e de evolução. As gerações que V. vem educando, serão as primeiras a prescindir dos feriados religiosos porque estarão já preparadas para isso!”.
Ora, muito obrigado!
(…)
Quem não concordar com a inovação, que não mande lá os filhos. Que os deixe ficar em casa nos dias santos, se lhes apetecer. É muito simples… por se transigir com meia dúzia de espíritos atrasados não devemos sacrificar o ideal comum.
De resto, os dias santificados, nem sequer têm a vantagem de representar um descanso extraordinário para professores e alunos, visto como, à imitação do que se faz nas escolas do governo, sempre que há um feriado católico, se deixa de considerar feriado a quinta-feira da semana respectiva.
E, quanto às férias do Natal e da Páscoa, são facilmente substituíveis por outras, equivalentes em duração, pois não nos faltam mártires da Ciência e do Livre Pensamento, a que possamos consagrá-las. Isto, com grande vantagem para a propaganda educativa, porque –por exemplo – se nós tivessemos, em lugar da Semana Santa, a Semana Laica de Galileu, far-se-iam conferências instructivas, cortejos infantís, jogos e cânticos ao ar livre, “marches aux flambeaux” – festas democráticas, enfim, próprias para libertar o povo das trevas da ignorância, ao passo que as outras – impostas pelos cânones – apenas servem de perpetuar o erro, que se transmite atravez dos tempos, por efeito das tradições.
Maria Velleda
Vanguarda, 6 de Abril de 1909