Ouvi o primeiro discurso de Bento XVI em Portugal sem qualquer surpresa. O discurso, como previa, fez uma referência ao centenário da República em Portugal, sublinhando a importância da colaboração entre Igreja e Estado. Para um observador menos atento ao percurso do cardeal Ratzinger, esta referência poderia ser lida como uma renovação do espírito do Concílio Vaticano II no que respeita à separação Estado-Igreja, ou, mais concretamente, em relação à «autonomia das realidades temporais». Quem leu a primeira encíclica do Papa que reintegrou os bispos integristas da SSPX sabe que isso está muito longe da realidade. A Deus Caritas Est explicita na sua segunda parte o que tem sido o tema do seu papado, a recusa da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos.
De facto, a encíclica reitera o que tem sido a doutrina da Igreja face às ameaças marxistas que, com as suas pretensões de justiça social, ameaçavam retirar à Igreja a arma por excelência do proselitismo, a caridade. Bento XVI distingue entre a acção indirecta da Igreja, da competência dos católicos leigos que devem assumir «empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade», e acção directa da Igreja que se deve restringir à «actividade caritativa organizada». Ou seja, para o Papa não compete directamente à Igreja «a formação de estruturas justas», com o que condena implicitamente todos os teólogos da libertação e afins, a Igreja deve imiscuir-se na política apenas indirectamente, preparando leigos que devem trazer os ditames do Vaticano para a cena política dos respectivos países.
A confirmá-lo, Bento XVI evocou as Concordatas de 1940 e 2004, afirmando que «a Igreja está aberta a colaborar com quem não marginaliza nem privatiza a essencial consideração do sentido humano da vida» explicando que só a Igreja permite «uma visão sábia sobre a vida e sobre o mundo» da qual «deriva o ordenamento justo da sociedade». Assim, explicou o Papa sem referir explicitamente as guerras católicas às últimas alterações legislativas em Portugal, a intervenção pública dos católicos não é «um confronto ético entre um sistema laico e um sistema religioso». Em causa, continuou, está o sentido da «própria liberdade». Ou seja, para o Papa não há nem ordenamento justo da sociedade nem liberdade se não nos submetermos todos à «visão sábia» do Vaticano. Esta viagem parece assim querer ressuscitar os ícones políticos que povoam o relicário mental de uma Igreja que ainda se considera a única detentora de verdades absolutas, reveladas pela mesma reverberação divina que a incubiu da missão histórica de nos salvar mesmo contra a nossa vontade.
(Palmira F. Silva, Diário de Notícias online, 11 de Maio de 2010)