A laicidade na 2ª República: formalizada mas não praticada

No dia 24 de Abril de 1974, se alguém perguntasse a um português médio qual era a instituição oficialmente não estatal que mais claramente apoiava o Estado Novo, a resposta seria muito provavelmente «a igreja [católica]». Todavia, na morte da ditadura não se fez o julgamento de meio século de união moral entre a maior igreja em Portugal e o regime de extrema-direita, nem se enterraram a generalidade dos ganhos políticos e institucionais que essa igreja conseguira através dessa aliança estreita. Pelo contrário, a laicidade seria, desde a fundação da 2ª República, garantida formalmente mas não praticada substancialmente.

A Revolução do dia 25 de Abril de 1974 deixou realmente, como se verá neste artigo, a República portuguesa actual com uma Constituição que contém um conjunto de preceitos que apontam no sentido da laicidade e poderiam moldar uma República laica. Todavia, os responsáveis políticos e institucionais ao longo das últimas cinco décadas escolheram não assumir a laicidade como um pilar do regime e até ignorar ou mesmo contradizer o espírito e a letra da Constituição de 1976, o que se tornou particularmente claro no século XXI a partir da Lei da Liberdade Religiosa (2001) e da celebração de uma nova Concordata com a Santa Sé (2004), e ainda por práticas políticas e institucionais sem resguardo nesses documentos, umas herdadas do Estado Novo e outras inovadas pela democracia, e que presumem o catolicismo como uma «religião de Estado» não oficial. As garantias de laicidade conferidas aos cidadãos na Constituição têm sido ignoradas nuns casos, defendidas noutros, e a evolução das relações com as comunidades religiosas tem sido nitidamente complexa. À questão «o Estado português é laico?» tem portanto que se responder que constitucionalmente sim, mas que a prática política e institucional se tem abstido de o concretizar, quando não tem contrariado activamente os princípios laicistas. Lamentavelmente, nenhum governo e nenhum partido desde 1976 apresentou uma vontade sistemática, coerente e continuada de laicizar as instituições estatais, ou sequer de assumir a laicidade como pilar fundamental da democracia.

O que é a laicidade?

    A laicidade não é a mera separação entre o Estado e as igrejas. É muito mais: é o princípio político de que o Estado se deve restringir a resolver os problemas do mundo que todos concordamos que existe. Dito de outra forma, significa que as concepções religiosas ou metafísicas não são um assunto público de que o Estado se deva ocupar e que devem ser deixadas à apreciação privada dos indivíduos. A laicidade desliga portanto a res publica – que se ocupa dos interesses comuns a todos – das finalidades religiosas – que são do interesse particular de grupos de cidadãos. A ligação política entre os indivíduos de uma República laica é assim a cidadania partilhada por todos, que deve ser exterior e cega aos laços religiosos ou de outro tipo de pertença que existam. Os valores fundamentais da laicidade são a liberdade de consciência, a igualdade dos cidadãos e a universalidade das leis. A liberdade de consciência inclui a liberdade de cada indivíduo ter uma religião, não ter religião alguma, mudar de convicção religiosa, e manter privadas as suas opções em matéria religiosa. A igualdade dos cidadãos significa que ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado pela sua opção em matéria religiosa, seja esta opção uma religião maioritária ou minoritária, ou uma opção espiritual não religiosa (como o agnosticismo ou o ateísmo). A universalidade das leis é a exigência de que não haja leis específicas para cidadãos que pertençam a uma comunidade religiosa: as leis devem ser feitas para todos, e cegas quanto às convicções em matéria religiosa. O reconhecimento de direitos específicos a comunidades religiosas (ou culturais, ou étnicas) introduz necessariamente diferenças de tratamento, e o direito à diferença, embora legítimo no quadro do exercício de liberdades iguais para todos, não pode descambar nas diferenças de Direito.

    Do 25 de Abril à Constituição de 1976

      As circunstâncias da Revolução impuseram como urgências terminar a guerra colonial e constitucionalizar uma democracia pluralista. A colocação da laicidade como um preceito claramente definidor do futuro regime democrático não era incompatível com estes objectivos, e alguns dos novos protagonistas prometeram-no ao longo do primeiro ano do período revolucionário, designadamente preconizando a revogação da Concordata que em 1940 formalizara a aliança entre a igreja católica e uma ditadura que unia católicos militantes a fascistas e conservadores. Porém, num contexto em que os debates na sociedade e na própria Assembleia Constituinte se polarizaram em torno do carácter potencialmente socialista da 2ª República, e portanto do papel do Estado na economia, na comunicação social e mesmo nos sindicatos, a questão da laicidade foi secundarizada. Pior, a turbulência do processo revolucionário e a correlação de forças posterior ao Verão de 1975 empurraram grande parte do campo progressista para uma aliança de facto com a igreja católica, como os debates da Assembleia Constituinte demonstram. Em resumo, a laicidade seria garantida na Constituição de 1976, mas a sua aplicação prática não seria assumida como desejável pelas principais forças políticas, que evitaram causar qualquer abalo de maior ao poder fáctico da igreja católica, durante o período revolucionário e na instauração do novo regime.

      No período revolucionário e pré-constitucional, o avanço laicista mais importante foi o Protocolo Adicional à Concordata, assinado em 15 de Fevereiro de 1975 e que permitiu o divórcio aos casados pela igreja católica, mas que porém teve o efeito secundário de manter em vigor a Concordata. Esta revisão de um único artigo da Concordata de 1940 aconteceu na sequência de um movimento cívico protagonizado por Francisco Salgado Zenha e outros, tornado premente pelo grande número de casais que se tinham separado mas estavam impedidos de se divorciarem e voltar a casar por a Concordata não o permitir aos casados pela igreja católica1 . Infelizmente, num sinal premonitório do que aconteceria nos meses seguintes, o próprio Protocolo Adicional reafirma explicitamente a vigência da Concordata, embora, insista-se, num momento ainda pré-constitucional.

      Nos debates da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de Abril de 1975 e formada a 2 de Junho desse ano, obviamente muito centrados na definição do carácter socialista da Revolução (e portanto em questões como o peso do Estado na economia e na sociedade ou os direitos dos trabalhadores), a laicidade não foi um ponto de discórdia saliente. Os preceitos constitucionais que estabelecem a laicidade da 2ª República foram aprovados por unanimidade em Agosto e Setembro de 1975. Desde então, a Constituição garante no seu artigo 41º que «a liberdade de consciência, religião e culto é inviolável» e que «as igrejas e comunidades religiosas estão separadas do Estado». Todavia, o estatuto constitucional

      1 «Artigo XXIV: Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis ao casamento católico.» [Redação de 1940 da Concordata] da escola privada face ao ensino público seria pretexto para um debate intenso em que a laicidade foi uma questão presente: a 9 de Setembro veio da Comissão de Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais um articulado que mantinha a extinção a prazo do ensino particular, e que garantia também que «o ensino oficial será laico». Ora, a 10 de Outubro a Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma Nota Pastoral tomando partido pela escola privada, e no dia 14 de Outubro os partidos maioritários na Constituinte recuaram obedientemente, abandonando a «integração do ensino particular no ensino oficial», e substituindo o carácter «laico» do ensino público pela sua «não confessionalidade». O «caso Renascença» e o «Verão Quente» tinham levado a uma aliança de facto dos sectores moderados com a igreja católica contra as esquerdas radicais, consumada no texto constitucional.

      O período de indefinição: avanços e recuos (1976-1999)

      Nas primeiras décadas da democracia, as relações entre o Estado e a igreja católica foram geridas com muita precaução pelo poder político, sempre desejoso de evitar um regresso à «questão religiosa» da 1ª República, mas as questões geradas por novos movimentos religiosos e pela secularização de grande parte da sociedade acabaram por colocar em causa o regime de relações que, através da Concordata, reconhecia uma única comunidade religiosa.

      O Acórdão nº423/87 do Tribunal Constitucional é provavelmente o acontecimento mais paradigmático deste período: constituiu simultaneamente uma pequena vitória e uma tremenda derrota para o laicismo. Vitória porque, por uma maioria de seis votos contra quatro, foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º de um Decreto-Lei que exigia de quem não quisesse frequentar a Religião e Moral Católica uma declaração expressa nesse sentido (obrigando assim à «exteriorização» de algo da «reserva pessoal», violando o nº1 – liberdade de consciência – e o nº4 – privacidade – do artigo 41º da Constituição); derrota porque, por cinco votos a favor e cinco contra – desempatados pelo voto do Presidente do Tribunal Constitucional – não se declararou inconstitucional mais nenhum dos restantes cinco artigos do Decreto-Lei.

      Entre os juízes vencidos na declaração de inconstitucionalidade da generalidade do Decreto-Lei, Luís Nunes de Almeida afirma, na sua declaração de voto, que os demais cinco artigos «ao estabelecerem que o ensino da religião e moral católica é ministrado pelas escolas públicas, integrando o respectivo currículo escolar normal, a expensas do Estado e através de agentes seus, violam o princípio da separação das igrejas do Estado, consignado no nº4 do artigo 41º, o princípio da não confessionalidade do ensino público, vertido no nº3 do artigo 43º, e o princípio da igualdade, reconhecido no artigo 13º da Constituição da República portuguesa». Nunes de Almeida afirma no seu voto de vencido que «não é legítimo que o Estado assuma como coisa sua, adoptando-o oficialmente, o ensino de qualquer religião. Tal ensino é livre (…) mas tão-só quando praticado no âmbito da respectiva confissão», e defende um modelo próximo do francês, em que o Estado «emprestasse» os edifícios escolares para o ensino da religião, sem que este ensino fosse parte do currículo escolar nem os professores, por o serem, tivessem relação com o Estado. Uma solução que seria aceitável para os laicistas.

      Noutra esfera do poder estatal, nos anos 80 e 90 vários governos cederam às pressões da igreja católica para ter (mais uma) frequência nacional de rádio, primeiro, e depois até um canal de televisão.

      Na Assembleia da República, em 1998 os partidos políticos não tiveram a coragem de legislar a Interrupção Voluntária da Gravidez decisivamente, acabando por remeter a questão para um referendo nacional, que foi ganho tangencialmente – para espanto de muitos – pelo campo clerical (51% contra 49%), após uma campanha que demonstrou que a igreja católica tinha maior capacidade de mobilização que as organizações da sociedade civil secularizada.

      Contudo, a sociedade mudava: em meados dos anos 90, foi com intolerância e até hostilidade que os media descreveram as aquisições imobiliárias e manifestações públicas de um novo movimento religioso, a Igreja Universal do Reino de Deus. O período histórico em que o catolicismo era a religião «natural» dos portugueses estava a terminar, e tornavam-se prementes alterações no enquadramento legislativo.

      O desvio comunitarista (de 1999 à actualidade)

      O debate que haveria de conduzir à Lei de Liberdade Religiosa (LLR) de 2001 e à Concordata de 2004 seria marcado por duas dinâmicas opostas: os defensores da laicidade – que chegaram a tentar que a LLR se aplicasse à igreja católica – e os defensores do estatuto privilegiado do catolicismo, que no essencial acabaram por triunfar. Efetivamente, nos seus primeiros artigos a LLR densifica os direitos individuais em matéria de religião de uma forma laicista, mas no seu artigo 58 exclui a igreja católica da aplicação da lei em matéria de direitos coletivos de liberdade religiosa, hierarquizando as comunidades religiosas. A LLR permitiu de facto alargar a algumas comunidades religiosas privilégios de que a igreja católica já gozava (do reconhecimento de casamentos às isenções fiscais), mas a predominância do catolicismo sobre outras comunidades religiosas não foi beliscada.

      A Concordata de 2004 manteve o reconhecimento da ordem interna da igreja católica (o «Direito Canónico») no Direito da República, comprometeu o Estado com a oferta de Educação Moral e Religiosa Católica na Escola Pública, e garantiu a «afetação permanente» para o culto católico, livre de encargos, de uma parte significativa do património monumental do Estado. Em 2009, um conjunto de Decretos-Lei sobre a assistência religiosa nos hospitais, prisões, e nas forças armadas e de segurança viria garantir que, embora o acesso de outras comunidades religiosas aos crentes confinados nessas instituições fosse livre, só os capelães católicos seriam remunerados pelo Estado. Práticas clericais como a realização de cerimónias religiosas em escolas públicas, universidades ou inaugurações de obras mantêm-se, mesmo sendo ilegais.

      Seguir-se-iam outras «Concordatas»: em 2015, a chamada «lei dos sefarditas», que veio permitir que as sinagogas interviessem directamente nos processos de aquisição de nacionalidade dos descendentes de judeus sefarditas; e o acordo com a Comunidade Ismaelita, que reconheceu imunidades judiciais e isenções fiscais. Avança-se no sentido, bem pouco republicano, de cada comunidade religiosa ter uma lei própria, aquilo que se pode designar por desvio comunitarista. O horizonte republicano em que todos os cidadãos terão os mesmo direitos independentemente da pertença religiosa fica cada vez mais longe.

      Entretanto e em sentido contrário à evolução legislativa, a sociedade não parou de se secularizar: em 2007, os casamentos civis passaram a ser mais de metade dos novos casamentos; e em 2015, mais de metade das crianças já nasceram de pais que não estavam casados. Simultaneamente, o mesmo poder político que nunca desafiou o poder institucional e económico da igreja católica mostrou-se sensível às alterações nos costumes: em 2007, a IVG foi despenalizada após novo referendo, vencido pelo «sim» (por uma confortável margem de 59% contra 41%); em 2010, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado; e em 2023 foi finalmente legislada a morte assistida. Se a laicidade nos deve proteger da ditadura da maioria, temos infelizmente que reconhecer a 2ª República manteve um regime de favorecimento simbólico e financeiro da igreja católica. Numa época em que as mudanças e os movimentos de povos aceleraram, e em que Portugal recebe um contingente significativo de muçulmanos asiáticos e evangélicos brasileiros, pode perguntar-se como será gerida a diversidade para que Portugal inexoravelmente caminha: através de um regime de predominância do catolicismo como «religião de referência», de um regime comunitarista de reconhecimento de direitos diferentes conforme as comunidades religiosas, ou por um regime de laicidade em que todos os cidadãos sejam livres e iguais?

      Ricardo Gaio Alves (Março de 2024)