por Luis Mateus (*)
A propósito de um artigo de opinião publicado hoje (28-05-2003) no jornal Público “Europa: Será Cristã ou Não Será“ e em nome da Associação Republica e Laicidade, gostaria de deixar aqui expressa e minimamente justificada a posição que temos sobre essa questão e que é inteiramente contrária à manifestada pelo articulista.
É bem verdade que a Europa vive hoje um momento decisivo para a consolidação da sua união e que a Convenção para a Europa, constituída na sequência da Declaração de Laeken e presidida por Valéry Giscard d’Estaing, no anteprojecto do Tratado Constitucional que consagrará a nova arquitectura institucional europeia, apesar das pressões contrárias que se têm vindo a exercer sobre ela, tem persistido em omitir naquele texto qualquer referência à (suposta) origem cristã da Europa.
No concreto, o autor do artigo diz-se chocado com o facto de aquele texto proclamar, no seu Artigo 1º, que a instituição de uma União Europeia se inspira na “vontade dos povos e dos Estados da Europa de construírem o seu futuro comum”, sem fazer referência às suas raízes comuns, que são cristã.
Contudo, em nosso entender — e partilhamos este ponto de vista com inumeros cidadãos e muitas associações europeias nossa parceiras — a verdade é bem outra, já que:
1. nem a raiz comum dos europeus se pode, em rigor histórico, confinar à evocada referência cristã;
2. nem só com europeus de origem (de nascimento e de matriz cultural) se está hoje a construir a União Europeia.
Efectivamente:
1. se a referência cristã foi marcante (leia-se: dominante e até totalitária e opressora) no espaço europeu, durante o período histórico que vai dos séculos IV ao XVI, certo também é que os europeus se podem igualmente reclamar e orgulhar de uma herança humanista que, original da Grécia e Roma clássicas e geralmente construída em processo de ruptura e afrontamento aberto com a tal referência cristã, se desenvolveu, afirmou e disseminou pela Europa renascentista e moderna, mantendo-se como a principal referência do pensamento filosófico actual, enformando, aliás, decisivamente, o senso comum dos europeus contemporâneos;
2. no quadro de acrescida mobilidade demográfica que caracteriza o mundo contemporâneo, os habitantes da Europa de hoje são, numa percentagem muito significativa (e crescente), pessoas oriundas de espaços em que a tal herança cristã pouco ou nada marcou (pelo menos de um modo que se possa considerar como positivo).
Que o futuro se constrói sobre o legado do passado, constitui uma afirmação que não subscrevemos, sem qualquer problema e em sintonia com o articulista. Contudo, da leitura que fazemos da História Europeia, se conseguimos retirar boas razões para que precisamente se evite qualquer referência à herança religiosa (cristã ou outra) na sua futura Constituição.
No apoio da nossa tese, cabe lembrar aqui que os dois milénios de História da Europa que conduziram à sua realidade presente foram essencialmente marcados pela divisão, pela discórdia e pela guerra entre os diversos povos e nações que a constituem, e que, na raiz desses desentendimentos e conflitos abertos, sempre estiveram afirmações identitárias fundadas em interpretações divergentes (contraditórias) da perspectiva religiosa (cristã).
É perante esse legado histórico europeu marcado pelos conflitos sangrentos entre ortodoxias e heterodoxias religiosas e também ideológicas, no século XX que a Laicidade se nos apresenta como a grande regra basilar, imprescindível a qualquer contrato social fundador de uma Europa Una.
Efectivamente, é a Laicidade que, ao subtrair os poderes publicos a influência das comunidades confessionais ou ideológicas, se impõe como o unico modo de assegurar a igualdade entre todos os cidadãos num qualquer espaço comum e necessariamente neutro, para poder ser partilhável que se pretenda construir.
A Associação República e Laicidade entende que, nas sociedades contemporâneas e, muito particularmente, na sociedade europeia, a religião não pode constituir, nem motivo de divisão e conflito entre os homens, nem motivo de privilégio ou discriminação de cidadãos, nem fundamento dogmático para qualquer norma de conduta de aplicação universal.
Um projecto unificador como o da construção de uma União Europeia, o propósito de construir e instituir um espaço político comum europeu, só pode assentar em referências universalmente partilháveis e só por esse motivo que a futura Constituição Europeia — futura Lei Fundamental daquela União — se pode constituir-se como um texto em que todos, absolutamente todos, os europeus se possam rever, independentemente de se identificarem ou não com qualquer confissão religiosa.
Que o Papa da Igreja Católica exorte a Europa a ser “fiel às suas raízes cristãs”, não nos surpreende, já que, ao longo da História, sempre foi essa a postura daquela Igreja: tentar impor a todos as suas normas e valores, independentemente dos sentimentos adversos que essa actuação pudesse suscitar. Que a Europa — a Europa dos crentes católicos (ou cristãos) e a dos não crentes — siga aquela sua exortação, já seria, na nossa perspectiva, um gravíssimo erro histórico que só se poderia entender por uma absoluta, e sem duvida deliberada, amnésia histórica dos políticos europeus.
[28/5/2003]
(*) Presidente da Direcção da Associação República e Laicidade, membro do Mouvement “Europe & Laïcité CAEDEL (Centre d’Action Européenne Democratique et Laique) e do Observatório Europeu da Laicidade.
Nota: a publicação deste artigo foi recusada no jornal Público.