A ideia de República: de 1910 aos nossos dias

Ser republicano hoje, não é necessariamente defender acriticamente a República implantada em 1910 – e que terminou em 1926 –, e não é certamente estar satisfeito por completo com a República actual.

No entanto, existem evidentemente linhas de continuidade.

Ser republicano, hoje como em 1910, é em primeiro lugar defender como valores fundamentais a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

A Revolução de 5 de Outubro de 1910 foi feita em nome de liberdades que hoje tomamos por garantidas, como a liberdade de consciência, ou seja, a liberdade de professar a religião que se deseje, de mudar de religião ou de expressar a sua opinião em matéria de religião. Esquece-se hoje, com frequência, que há um século, em Portugal, as comunidades religiosas não católicas estavam numa semi-clandestinidade, não podendo ter locais de culto com aspecto exterior de templo, e que se ia para a prisão por criticar dogmas religiosos nos jornais, ou simplesmente por não tirar o chapéu à passagem de uma procissão.

A liberdade é justamente o primeiro dos valores porque sem liberdade não há igualdade. Se uns são mais livres do que outros para seguir os ditames da sua consciência, não há igualdade. A liberdade é sempre individual. É sempre a liberdade de cada indivíduo proceder em conformidade com a sua consciência. Mas a igualdade é uma questão social. É a igualdade de todos perante a lei, e a igualdade de oportunidades (não necessariamente a igualdade de resultados).

A República de 1910 suprimiu a instituição monárquica – ou seja, a chefia do Estado entregue a uma família e aos acasos da hereditariedade e da genética. É, no entanto, um erro resumir a Ideia de República à questão da chefia do Estado – existem Repúblicas, como a Suíça, em que o lugar de Presidente não concede qualquer privilégio especial para além da representação externa do Estado. Diga-se, aliás, que na Assembleia Constituinte de 1911 se discutiu longamente se a chefia do Estado deveria ser entregue a uma única pessoa – ou se não seriam possíveis outras soluções, como uma chefia de Estado colegial. A dificuldade é a diplomacia internacional, que continua organizada em torno da ideia de que cada Estado é representado por uma única pessoa.

Deve acrescentar-se, ainda sobre a República implantada em 1910, que representou um avanço considerável para a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Esquece-se frequentemente que, antes de 1910, uma mulher casada não podia estar em tribunal sem autorização do marido, e que não podia publicar escritos sem consentimento do marido. O avanço na igualdade de direitos civis entre homens e mulheres foi considerável. Faltou evidentemente o direito de voto das mulheres – uma questão que, na época, começava a ser debatida em toda a Europa. Entre os republicanos, a maioria opunha-se ao direito de voto para as mulheres – mas existiam republicanos que defendiam esse direito. No sector monárquico, esse debate não existia.

Para além dos valores fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade, a Ideia de República é também inseparável do conceito de cidadão como célula fundamental da sociedade, pelo menos ao nível político. Em República, idealmente, todos somos cidadãos livres e autónomos, iguais em direitos. Não somos súbditos de um rei ou outro poder, nem são as corporações ou as comunidades religiosas que detém o poder político.

Deve referir-se ainda, sobre a República que durou entre 1910 e 1926, que não foi obra de uma pequena minoria isolada nem exclusivamente do Partido Republicano. O «5 de Outubro» e as transformações políticas e sociais que gerou, são obra de um vasto movimento que não se resumia ao Partido Republicano, mas que incluía também associações cívicas como a Liga das Mulheres Republicanas, a Associação do Registo Civil, a Liga Nacional de Instrução, a Junta Liberal, a Associação do Livre Pensamento e, evidentemente, outro tipo de organizações como a Carbonária, e ainda pequenos sectores socialistas e anarquistas.

A República, em 1910, era também inseparável de uma aspiração, talvez utópica, de transformação social, através da universalização do ensino básico, do fomento do ensino superior e da difusão da ciência. Registaram-se progressos neste campo que raramente são recordados. O Partido Republicano, que foi o primeiro partido político português no sentido moderno do termo, estava organizado através de uma rede de Centros Republicanos locais que serviam também como escolas. À data do «5 de Outubro», 75% dos portugueses eram analfabetos. Ao nível do ensino primário, passou-se de cerca de 5300 escolas em funcionamento para 6600 – um aumento de 24%, o que no entanto ainda ficou longe de cobrir todo o território nacional. E, através das Escolas Móveis (que difundiam o «Método João de Deus»), cerca de 200 mil portugueses frequentaram a escola (dos quais metade obteve aproveitamento). Ao nível do ensino universitário criaram-se as primeiras universidades fora de Coimbra – as Universidades de Lisboa e do Porto, e o número de estudantes universitários mais do que triplicou: entre 1910 e 1926, passou-se de 1200 alunos universitários para 4100. Existiu também um movimento muito significativo de Universidades Populares. E registou-se um aumento considerável do número de mulheres a frequentar todos os graus de ensino.

Finalmente, deve referir-se que foi durante a 1ª República que se conteve o défice público e se equilibraram as contas, nomeadamente nos orçamentos de 1912-13 e 1913-14 (com os ministros das Finanças Afonso Costa e Tomás Cabreira). A participação na guerra viria a perturbar quer o orçamento quer a própria estabilidade política e social interna.[1]

Como disse de início, não é necessário defender integralmente a República que durou de 1910 a 1926 para ser republicano, hoje. Tentei apenas aqui referir alguns aspectos que raramente são mencionados sobre a 1ª República e que permitem, creio eu, olhar de uma forma mais informada para esse período. Mas, pensemos o que pensarmos dos republicanos de 1910, existem hoje, em 2009, boas razões para ser republicano.

A Ideia de República, hoje, continua a ser inseparável dos valores de liberdade, igualdade e fraternidade. Continua a estar ligada ao princípio de que os cargos de poder devem ser transitórios e acessíveis a qualquer cidadão. É portanto um bom princípio republicano limitar o número de mandatos de qualquer cargo político – e é também um bom princípio republicano alargar o acesso aos cargos de poder a qualquer cidadão, seja ou não de naturalidade portuguesa. Quando tanto se discute a integração dos imigrantes, deveríamos reflectir sobre se o direito de voto para todas as eleições não deveria ser alargado aos cidadãos de nacionalidade estrangeira que residam em Portugal há quatro ou cinco anos. E deveríamos reflectir também se faz sentido exigir constitucionalmente que o Presidente da República seja português de naturalidade e maior de 35 anos.

Evidentemente, um dos maiores problemas actuais de Portugal é a lentidão da justiça, o mau funcionamento da justiça e a insuficiência da justiça.

Outra questão que penso que nos deveria preocupar, enquanto republicanos, é a recusa do Estado actual em assumir uma ruptura com a cultura política herdada do Estado Novo – que muitos de nós não consideram uma República. Efectivamente, a democracia actual continua a promover como heróis as mesmas figuras históricas que eram heróis do Estado Novo: quando se fez uma nova ponte sobre o Tejo em Lisboa, o nome escolhido foi o do navegador Vasco da Gama; quando se fez a Expo 98, o tema escolhido foram os Oceanos; recentemente, tivemos o apoio estatal (através do Presidente da República) à canonização de Nuno Álvares Pereira, um computador chama-se «Magalhães» e um projecto de alteração da Praça do Comércio que, apesar de inserido nas comemorações do centenário da implantação da República, introduz nesse espaço pombalino alusões aos «descobrimentos». O regime actual continua, portanto, a colocar como figuras de referência para o todo nacional os mesmos cavaleiros medievais e navegadores quinhentistas que o Estado Novo promoveu. Seria melhor que as figuras de referência do regime actual fossem os homens e mulheres que defenderam, em particular nos últimos 200 anos, que Portugal fosse o que é hoje: uma república democrática e constitucional. Penso em nomes como Manuel Fernandes Tomás, Mouzinho da Silveira, Alexandre Herculano, o tão vilipendiado Afonso Costa, António Sérgio, Raul Proença ou os próprios militares do MFA. Um regime deve homenagear aqueles que lutaram para que o Estado fosse o que é efectivamente hoje.[2]

Ricardo Alves

28 de Novembro de 2009

Associação República e Laicidade


[1] Saldo do orçamento de 1912-13: + 117 milhares de libras-ouro; 1913-14: + 1257 milhares de libras-ouro.

[2] Conferência proferida na Biblioteca Museu República e Resistência (Lisboa) em 28 de Novembro de 2009, a convite da Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, e em representação da Associação República e Laicidade.