«…Reconhecer jurisdição eclesiástica no Estado seria restabelecer o Tribunal da Inquisição»

«…Reconhecer jurisdição eclesiástica no Estado seria restabelecer o Tribunal da Inquisição»

A redacção deste artigo 6(1) oferece à primeira vista uma série de doutrinas repugnantes aos princípios fundamentais do sistema constitucional, e diametralmente opostas às garantias que no § 4 do artigo 145(2) desta mesma carta são expressamente concedidas à liberdade de consciência de todos os moradores, nacionais ou estrangeiros.

Assim é contraditório com as disposições daquele § 4 proibir aos estrangeiros quaisquer práticas de culto não católico fora de suas casas, tais como as de seus enterros, casamentos, romarias, trajes religiosos, etc., quando elas não faltarem ao respeito devido à religião católica nem ofenderem a moral pública.

Outro grave defeito do mesmo artigo 6 é que ele dá lugar à seguinte inferência:

Diz o artigo que todas as religiões serão permitidas aos estrangeiros. Donde parece seguir-se, e de facto se deduz por uma rigorosa consequência, que são permitidas aos estrangeiros, mas não aos Portugueses.

Logo, todo o português que não professar a religião católica, apostólica, romana, falta à lei; se falta à lei, comete um crime, e se comete um crime, deve ser punido.

Mas não professar uma religião não é faltar-lhe ao respeito, nem é ofender a moral pública: e por conseguinte, o artigo 6 proibindo a todo o português qualquer culto que não seja o católico romano declara culpados e dignos de castigo os que seguirem qualquer outro culto: e logo este artigo acha-se em contradição com o § 4 do artigo 145.

Talvez dirá alguém que não há perigo de que sejam punidos os que praticarem outro culto, contanto que seja doméstico, porque a lei não impõe pena alguma. Se assim fosse, seria esse outro defeito da redacção do artigo, pois que sempre a par da defesa se deve declarar a pena. Mas não é assim: a pena é mui expressa na lei; porque se é verdade que o artigo só permite aos estrangeiros professarem outra religião, segue-se que um português, pelo simples facto de professar outra religião, cessa de ser português: quer dizer que perde os direitos de cidadão. E é este pequeno castigo?

Mas ainda aqui não param as deploráveis consequências daquele artigo.

Se aos portugueses não é licíto professarem outra religião que não seja a católica, apostólica, romana, poderá qualquer ser acusado de que não professa esta religião: e uma vez acusado, é forçoso que se defenda, e que enfim seja condenado ou absolvido. Ele faz a sua profissão de fé, e expõe qual tem sido a sua conduta em matéria de religião, que ele sustenta ser conforme aos princípios da religião católica, apostólica, romana: é precisamente nessa profissão de fé, nessa sua mesma conduta, que o seu adversário vê as provas da heresia que lhe exprobra.

Mas quem há-de ser juiz desta pendência? Os juízes leigos, não; porque as leis do reino, por onde eles devem julgar,não definem quais sejam as verdadeiras doutrinas, nem qual a disciplina do catolicismo.

Não perguntaremos se se escolherão juízes eclesiásticos: porque entre os eclesiásticos é que sobretudo têm lugar estas questões, e por conseguinte todos são incompetentes, porque qualquer que se escolhesse seria ao mesmo tempo juiz e parte; já porque reconhecer uma semelhante jurisdição eclesiástica no Estado seria restabelecer o Tribunal da Inquisição.

Se pois todos estes absurdos se seguem da forma em que se acha redigido o artigo 6, é indispensável reformá-lo, tomando-se por base o princípio de que ao governo não compete tomar conhecimento dos assuntos religiosos, porém sim e tão-somente assegurar aos ministros do culto católico a fruição dos direitos por eles adquiridos debaixo da protecção das leis, e garantir-lhes a recompensa que por seus serviços lhes devem as pessoas que, professando aquela religião, são vistas obrigarem-se a satisfazer aos encargos impostos pelas leis da igreja de que se dizem membros.

(Silvestre Pinheiro Ferreira; ver a nota biográfica.)


(1) Artigo 6 da Carta Constitucional: «A religião católica, apostólica, romana, continuará a ser a religião do Reino. Todas as outras religiões serão permitidas aos estrangeiros com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo».

(2) «Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem ao exercício deste direito, e pela forma que a lei determinar.»