«Fui convidado amavelmente a assistir a esta Festa, e entendi que devia vir, porque tenho atrás de mim uma vasta obra de doutrinação democrática, que venho realizando há uns poucos de anos, que os senhores não conhecem porque ainda não foi vulgarizada – e que seria bom que conhecessem.
Pareceu-me que, tratando-se de celebrar uma afirmação republicana, ao mesmo tempo que se inaugura a sala de uma aula, me competia falar de mim, ministro da instrução, da educação republicana, da instrução pública democrática.
As mais urgentes necessidades de instrução pública no nosso país são o aperfeiçoamento dos nossos técnicos nas melhores escolas do estrangeiro, e a democratização do nosso ensino.
Que se deve entender por democratização ou republicanização do ensino? É ter escolas onde se pregue a democracia e a república?
Não: é ter escolas onde se adquiram aqueles hábitos, aquelas maneiras de proceder, que devem caracterizar o cidadão republicano.
A pregação de doutrinas políticas, sociais ou religiosas, feita pelos mestres à mocidade, é muitas vezes contraproducente; a melhor mocidade, a de espírito mais vivo, tem tendência a opor-se ao que lhe pregam os seus mestres; sairam muitos ateus do colégio religioso de Campolide; nas escolas da Monarquia surgiu a mocidade republicana; das escolas da República não deixam de ir saindo, agora, muitos jovens monárquicos. Que significa tudo isto? Significa que o que importa, neste caso, não é pregar a Democracia dentro das aulas da escola pública: o que importa, sobretudo, é fazer da própria escola, do conjunto dos estudantes, uma sociedade democrática.
É isto que tenho pregado, e o que expus há muitos anos, numa série de estudos sobre educação cívica, mostrando como os alunos de uma escola se podem organizar sob a forma de democracia, elegendo os seus magistrados, desde o presidente da República até aos vereadores e aos juízes, e habituando-se assim a proceder republicanamente. Seria isto, senhores, a democratização da mocidade, não por palavras, mas por actos.
Democratizar a escola é, além disso, desvanecer o mais possível a velha distinção das classes liberais e das classes mecânicas, obrigando os futuros cidadãos, a qualquer classe que eles pertençam, ao trabalho manual na escola; dando carácter e base científica e portanto liberal, aos trabalhos mecânicos; colocando nas mesmas escolas, em comunidade de trabalho, os filhos do povo e os da burguesia; e organizando os grupos de alunos em corporações profissionais.
Democratizar a escola é ainda dificultar o acesso das altas carreiras universitárias aos filhos dos ricos que não têm capacidade para os mais difíceis trabalhos de ciência e da literatura; e, pelo contrário, facilitar esse acesso aos filhos dos pobres que nasceram com talento.»
(António Sérgio, citado a partir de Seara Nova, Antologia, vol. I, pág. 329-330.)
«…a base da democracia é a virtude, como já afirmava Montesquieu; isto é: a moralidade cívica de todos nós. Antes de ser um regime político, é a democracia uma atitude moral; e a maneira de fazer a democracia não é directamente pela política, mas indirectamente pelos costumes. A causa da imoralidade dos homens públicos é a imoralidade cívica dos cidadãos, e povo algum entre os mal governados se pode queixar dos seus governantes, pois são os povos, afinal de contas, quem os selecciona e quem os faz. Fundar a democracia, é levar a substituir progressivamente a autoridade externa de certos homens (ou dum certo homem) sobre os outros – pela autoridade interna de cada um de nós, isto é, pelo império do racional de cada alma cívica sobre os seus próprios interesses e paixões. Por outras palavras: a democracia corresponde nos sistemas políticos à ideia moral do autodomínio. O primeiro princípio do democrata é transportar a ideia de governo e império – do corpo social, onde todos a vêem, para dentro do espírito do cidadão. O democrata verdadeiro não é o que começa por dizer ao povo: “tu és soberano”; mas sim o que toma como ideia básica: “que cada um eleve no seu próprio espírito um duro soberano do seu mesmo eu, que submeta os impulsos e as ambições, os desejos e os sentimentos, ao ponto de vista racional, que é o ponto de vista social”. Democracia é disciplina interna, política do Espírito; e querer construí-la mecanicamente, fora do Espírito, é não atingir a menor noção dos seus princípios fundamentais. Democracia, autodomínio, são aspectos complementares duma mesma ideia. Por isso, a autêntica pregação da democracia é dar o exemplo do “self-control”; É procurar a virtude em todos os actos; É ter sempre por objecto o bem da grei.»
(Idem, Vol. II, pág. 176.)