Breve história do primeiro século de separação entre Estado e igreja em Portugal
Resumo
A separação entre a Igreja e o Estado foi decretada em Portugal em 1911 (20 de Abril), na sequência da instauração da República em 5 de Outubro de 1910. A primeira Constituição da República, aprovada em 1911 (21 de Agosto), veio confirmar a laicidade introduzida pelo novo regime. O golpe militar de 1926 desembocou na ditadura fascista de Oliveira Salazar, a qual teve como um dos seus pilares a aliança com a Igreja Católica. Após a revolução dos cravos de 1974 e a aprovação de uma Constituição democrática em 1976, persistem infelizmente muitas situações e práticas clericalistas que impedem a realização plena dos ideais laicos.
- A implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, deveu-se aos esforços decididos de um movimento republicano numeroso principalmente nos grandes centros urbanos, organizado na Carbonária e que contou com a contribuição valorosa de republicanos, socialistas e anarquistas.
- O Governo Provisório do Partido Republicano Português procedeu imediatamente a uma série de medidas laicizantes (a abolição dos juramentos religiosos(1), a substituição do ensino da doutrina cristã pela educação cívica(2), o registo civil de nascimentos, casamentos e mortes, uma lei da família legalizando o divórcio e melhorando o estatuto dos filhos «ilegítimos»(3)), a que se seguiu a separação formal entre a estrutura eclesiástica católica e o Estado em Abril de 1911(4), implicando o fim da subvenção pública do clero católico e a «nacionalização» dos seus templos. O fim do regalismo monárquico permitiu tirar da clandestinidade pequenas comunidades protestantes e judaicas (no entanto, demograficamente pouco significativas) que receberam com entusiasmo a alvorada da liberdade de culto, e vinha ao encontro das aspirações laicistas expressas, nomeadamente, pela Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento. Deveu-se ao ministro da Justiça, Afonso Costa, a autoria da Lei de Separação e de outra legislação laicizante. No entanto, a separação desencadeou uma reacção clerical e monárquica que contribuiu para a instabilidade política dos anos que se seguiram, instabilidade essa agravada pela desilusão dos sectores operários com a República, e pela participação portuguesa na primeira guerra mundial. Na sequência da crise económica e financeira do início dos anos 20, a República caiu em 28 de Maio de 1926 quando o general Gomes da Costa, herói militar mas politicamente ingénuo, levou a sua coluna militar de Braga a Lisboa, instaurando uma ditadura de que seria rapidamente afastado…
- Oliveira Salazar, professor de Direito em Coimbra, entrou para o Governo em 1928 e seria chefe do Governo de 1932 a 1968 (o seu mais íntimo amigo dos tempos de estudante, Gonçalves Cerejeira, foi Cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971). Monárquico na juventude e católico a vida inteira, a reputação de rigor financeiro de Salazar permitiu-lhe granjear o apoio dos grandes grupos económicos. A Constituição de 1933(5) manteve a separação entre Estado e Igreja, embora mencionando explicitamente a Igreja Católica, as relações diplomáticas com a Santa Sé, e estabelecendo uma «República unitária e corporativa» baseada na família como «base primária» da sociedade (as liberdades individuais de expressão, associação e reunião ficaram remetidas para «Leis especiais», o que significou que na prática eram inexistentes). Após uma revisão constitucional em 1935(6), o ensino público ficou submetido aos «princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País» . No ano seguinte, foi decretado que «em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição» (a mesma lei criava uma organização paramilitar para a juventude, que se chamaria «Mocidade Portuguesa»)(7). Até 1974, todos os portugueses ficarão com a recordação marcante de uma sala de aula encimada por um crucifixo rodeado dos retratos de Salazar e do Presidente da República. A Concordata de 1940(8) virá consolidar a aliança entre a Igreja católica e o regime de Salazar, proibindo explicitamente o divórcio para os casais casados catolicamente e garantindo o ensino da religião e moral católica nas escolas públicas, nomeadamente. Em 1951, a religião católica passará constitucionalmente a «religião da Nação Portuguesa», com reconhecimento explícito do direito canónico, o que constitucionaliza um aspecto fundamental da Concordata. O apoio da Igreja Católica, que foi até à colaboração de sacerdotes com a polícia política e ao apoio à guerra nas colónias, permitiu a Salazar a estabilidade do regime. Após a sua incapacitação para o poder em 1968, a ascensão de Marcelo Caetano à chefia do Governo não trouxe alterações a um regime bloqueado pela guerra e que já pertencia a outra época.
- Após a revolução de 25 de Abril de 1974, a Igreja católica portuguesa considerou, no imediato, que nada havia de que retractar-se, e conseguiu atravessar o período revolucionário sem sobressaltos de maior. Esta «absolvição» da Igreja católica após um período de colaboração explícita com uma ditadura fascista foi possível porque o laicismo português estava enfraquecido, senão mesmo desmembrado, após meio século de ditadura. Efectivamente, desde 1940 que o essencial da resistência portuguesa fora conduzido pelo Partido Comunista Português, que, como todas as forças marxistas-leninistas, subordinava a aspiração laicista à luta socialista. Os sectores republicanos mais radicais foram dispersos pela repressão dos anos 30, e após 1974 o Partido Socialista, devido a uma leitura redutora ou mesmo errada que responsabilizava o laicismo pela queda da República de 1910-26, orientou-se sempre no sentido de evitar uma nova «questão religiosa», embora formalmente se reclamasse «republicano e laico». Todavia, durante o período revolucionário foi possível obrigar à revisão da Concordata de forma a possibilitar o divórcio civil aos casais casados catolicamente (um movimento popular dinamizado pelo socialista Salgado Zenha), e a Constituição de 1976 retomou a separação sem qualquer referência à Igreja Católica, e implementou a igualdade de todos os cidadãos independentemente das opções em matéria religiosa, e a não confessionalidade do ensino. A Concordata foi mantida e os privilégios da Igreja Católica não foram desafiados, com a excepção da ocupação durante alguns meses, pelas comissões de trabalhadores marxistas-leninistas, da Rádio Renascença (que pertencia, e pertence até hoje, ao episcopado). Durante o «verão quente» de 1975, alguns sacerdotes da Igreja Católica lideraram ou participaram nas manifestações de rua contra o governo liderado por Vasco Gonçalves (no momento em que este contava apenas com o apoio dos comunistas), manifestações que incluíram em várias ocasiões a destruição das sedes de partidos da esquerda radical…
- Após a estabilização do regime democrático, os cidadãos portugueses desfrutaram de liberdades individuais que, historicamente, pouco haviam conhecido. A não discriminação dos cidadãos por razões de sexo ou de opção religiosa tornou-se uma quase realidade rapidamente, e a aspiração generalizada era poder viver como no resto da Europa ocidental. Nas três décadas seguintes, deu-se um movimento irresistível de secularização dos costumes e de diversificação de opções religiosas. Os católicos praticantes passaram de 26% em 1977 para 18% em 2001; os casamentos civis subiram de 18% em 1973 para 45% em 2005; onde havia menos de um divórcio por cada cem casamentos, há hoje um por cada dois; a vida dos indivíduos e dos casais passou a ser cada vez menos condicionada por preceitos de origem religiosa… Paradoxalmente, o poder institucional da Igreja Católica tem aumentado durante este período. A Universidade Católica, que Salazar não permitiu, é hoje talvez a mais importante universidade privada; nos anos 90, foi atribuído um canal de televisão a um projecto católico; o maior banco privado é presidido por um membro do Opus Dei; o referendo de 1998, que propunha a despenalização da interrupção voluntária de gravidez, viu a vitória do «não» por uma pequena margem…
- É neste contexto, em que nenhum partido político ou associação promovia activamente a laicidade e os valores de separação do Estado e das religiões, de liberdade individual e de igualdade dos cidadãos, que a Associação República e Laicidade foi formada.
Ricardo Alves (Setembro de 2006)
(Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre do outono de 2006.)
(1) Decreto de 18 de Outubro de 1910.
(2) Decreto de 22 de Outubro de 1910.
(3) Decreto de 3 de Novembro de 1910.
(4) Lei da Separação da Igreja do Estado de 20 de Abril de 1911.
(5) Constituição de 1911.
(6) Revisão constitucional de 23 de Maio de 1935.
(7) Base XIII da «Remodelação do Ministério da Instrução Pública» (1936).