Liberdade, fim supremo
(Ao que obriga a liberdade)
Não basta, porém, ter a liberdade na boca. É preciso tê-la no coração e saber ao que nos obriga.
Liberdade é, essencialmente, o direito de optar entre duas ou mais opiniões. Mesmo contra a liberdade(1).
É isto o que muita gente não compreende. Mas compreenderam-no sempre os autênticos liberais.
Compreendeu-o Bouglé, quando escreveu: “Ser partidário da liberdade para uns, não para os outros, é, a falar a verdade, ser partidário da liberdade? Reconhecer que ela é boa para alguns, não para todos… não é confessar que ela não é boa em si?”.
Compreendeu-o Parodi: “A liberdade envolve o direito ao erro, e até o direito de renunciar à própria liberdade: não se poderia negá-lo sem sofisma”.
Assim, a liberdade obriga-nos ao respeito de todas as oposições, de todas as minorias, de toda a heresia política ou religiosa, de todo o pensamento discordante.
Tem de o compreender a política democrática, pois não se pense que a maioria tem o direito de calar a boca à minoria, que o sufrágio universal pode quebrar toda a oposição. Onde não há liberdade de oposição, não há democracia, nem mesmo sinceridade de sufrágio. Não confundir aqui com a argumentação reacionária. Costumam combater os reacionários o despotismo das maiorias, mas para o substituir pelo despotismo das minorias. O verdadeiro democrata, porém, não tolera nenhum despotismo, nem o das maiorias sobre as minorias, nem o das minorias sobre as maiorias. Que se cumpra a vontade da maioria, mas que fique livre o juízo de cada um. Inclino-me perante a vontade da maioria, mas não perante o juízo da maioria.
Tem de o compreender ainda a política socialista. “Os socialistas deverão comprometer-se – escreve Rosselli – a respeitar as minorias e o direito de oposição, seja qual for o seu título. Que não receiem parecer céticos ou fracos pelo facto de tal reconhecimento: o contrário é que é verdade. Não há fé mais sólida do que a que não receia a crítica do adversário, antes a provoca, a um tempo como aguilhão e como freio. Nenhum partido, nenhum movimento é tão forte como quando reconhece aos seus adversários o direito à vida.”(2)
Tem de o compreender finalmente a política anticlerical. “Ela não é legítima e conciliável com a democracia – dizia um grande republicano e um grande filósofo, Renouvier – senão com a condição de se fundar sobre um princípio jurídico que a regule e limite. Quereis que ela suprima o direito da superstição, o direito do erro; mas o direito da superstição, o direito do erro, é o direito mesmo do indivíduo, o direito do homem, o direito do cidadão. Não há liberdade se não há liberdade de erro; e o que é a República sem a liberdade? O que é uma República que não reconhece por princípio a autonomia, a soberania do indivíduo, ou que mente a esse princípio?”(3).
É preciso, pois, reter que o ideal da democracia não pode consistir nem no monopólio da opinião nem num clericalismo às avessas, nem coincidir com o ideal da escravatura. Porque como disse também Renouvier, “aquele que não tem o direito de falar é escravo”.
(1) Note-se que falo em opinião. Sem a separação do pensamento e do ato toda a liberdade é impossível, ou toda a sociedade é impossível.
(2) Rosselli, Socialisme libéral, 1930, p. 146.
(3) Renouvier, Critique Philosophique, XVII, p. 122.
(Raul Proença, Seara Nova nº239, 19 de Fevereiro de 1931)