Foi divulgado um manifesto “Em defesa das liberdades de educação” [1], pedindo que se respeite “a objecção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento”. O manifesto não especifica o porquê de essa objecção dever existir para esta disciplina (e muito menos porque não a estender a outras), e mesmo as declarações dos assinantes pouco concretizam o que realmente incomoda e justifica um pedido tão extremo. Para que o debate seja honesto e portanto avance, é exigível que os assinantes do manifesto sejam bem mais explícitos, sob risco de a discussão ser quase abstracta.

O programa da disciplina vai dos Direitos Humanos ao bem-estar animal, do empreendedorismo ao mundo do trabalho, da segurança rodoviária à educação ambiental, da sexualidade às instituições democráticas, da literacia financeira ao voluntariado, da educação para o consumo à diversidade cultural e religiosa. Responde a um conjunto vasto de preocupações recorrentes na sociedade portuguesa e às quais se exige frequentemente que a escola responda – como a toxicodependência, a sinistralidade rodoviária, a violência sexual ou a intolerância religiosa ou cultural. Apetrechar os futuros cidadãos para enfrentarem estes problemas é “totalitarismo ideológico [em] matérias sensíveis e de cariz moral”, como afirma um dos autores do abaixo-assinado [2]? Ensinar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição (ironicamente, muito citadas no manifesto) é “programar ideologicamente o ensino”? Ensinar para a liberdade, para a pluralidade e, no fundo, para a cidadania, não é nunca a imposição de uma ideologia, mas sim a consciencialização de que na sociedade existem várias opções ideológicas em diálogo.

O que haverá portanto de tão grave no programa desta disciplina que justifique a sua rejeição? Um dos autores do manifesto parece querer negar ao Estado um papel na educação sexual [3]. E o manifesto foi gerado pelo caso de duas crianças de Famalicão que reprovaram por, primeiro, os pais as terem impedido de frequentar a totalidade das aulas da disciplina e, segundo, por os mesmos pais terem recusado o plano de recuperação proposto pela escola (conforme já explicado pelo secretário de Estado Adjunto e da Educação [4]), pais esses que rejeitam justamente a educação sexual escolar. Uma alínea entre muitas de um programa amplo justifica que se objecte à totalidade? A existir, a objecção de consciência proposta serviria para cidadãos de cultura tradicional cristã, cigana ou islâmica esconderem às suas filhas – com a conivência do Estado – que vivem num país com igualdade de direitos entre homens e mulheres, ou para ocultar a criminalização das mutilações genitais, no limite para rejeitar o ensino da evolução ou da origem do universo. Alguns dos grupos mais fechados da sociedade ficariam reforçados no seu isolamento, e os indivíduos desses grupos desinformados dos seus direitos e deveres, e das leis e cultura da sociedade em que se inserem. É preferível termos cidadãos conscientes, esclarecidos e intervenientes.

A terminar: a Lei de Bases do Sistema Educativo tem nos seus princípios “assegurar a formação cívica e moral dos jovens” (artigo 3.º, alínea c). Quando coloca o objectivo de “proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral” (artigo 7.º, alínea n), não garante certamente um direito de objecção à cidadania (aliás, a objecção de consciência, quando existe, é exercida pelos próprios e não por terceiros, mesmo que pais). Garante, entende-se, que a matéria desta disciplina não é um dogma que requer adesão. Fica-se portanto no âmbito do fornecimento de informação e da recomendação, e não da doutrinação. E ainda bem que assim é, porque formar não é formatar: os futuros cidadãos têm que saber quais são os seus direitos e deveres, mesmo que, lamentavelmente, não consigam exercer plenamente os seus direitos ou não cumpram os seus deveres.
(Ricardo Gaio Alves, Associação República e Laicidade, Público, 7/9/2020)

[1] http://diocese-aveiro.pt/cultura/documento-em-defesa-das-liberdades-de-educacao/

[2] Manuel Braga da Cruz citado por Isaura Almeida em “Cidadania. Direito à objecção de consciência ou não à educação ‘self-service’?” (Diário de Notícias, 2/9/2020)

[3] idem

[4] João Costa em “A cidadania não é facultativa” (PÚBLICO, 3/9/2020)