Manifesto

da Associação Cívica República e Laicidade (R&L)

[aprovado em Assembleia Geral, a 8 de Março de 2003]

1. República e Laicidade

A República, na sua concepção moderna (1), assenta num entendimento humanista da dignidade do indivíduo, funda-se na trilogia programática da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” que aspira promover entre toda a Humanidade e constitui um sistema político que procura organizar racionalmente a sociedade em função do interesse geral e da justiça social, visando assegurar simultaneamente a igualdade cívica dos seus membros e a sua máxima liberdade individual.

Porque numa República, para garantir a paz cívica, a coesão e a harmonia social, os direitos – quer individuais, quer colectivos – dos cidadãos se devem subordinar ao interesse geral, as convicções filosóficas, religiosas e/ou ideológicas individuais – i.e. do domínio privado de cada um –, ainda que socialmente maioritárias e com livre expressão no espaço público, não podem ser impostas a toda a comunidade.

A Laicidade, ao assumir a incompetência do Estado em matérias que relevam da crença e convicção dos indivíduos, ao subtrair o Estado à influência de toda e qualquer comunidade confessional, constitui a norma de direito público que remete o livre exercício de qualquer opção filosófica, religiosa ou ideológica para o âmbito do direito privado e impõe-se assim como o modo de assegurar a igualdade entre todos os cidadãos no espaço comum e neutro que o regime republicano pretende garantir.

O facto de o Estado Republicano e Laico ter como objectivo a promoção da justiça social implica o dever de proporcionar a todos os cidadãos, de forma igualitária – e, portanto, confessionalmente neutra –, os serviços públicos essenciais de Educação/Instrução, de Justiça, de Saúde, de Segurança Social, etc., sem prejuízo do direito de estes poderem optar pelo recurso a serviços privados – e eventualmente confessionais – que, obviamente, pela sua natureza privada, não deverão beneficiar de financiamento público.

Deve contudo notar-se que a República e a Laicidade, tal como a Democracia ou a Tolerância, não resultam de qualquer predisposição natural do ser humano, antes decorrem de uma construção social e cultural deliberadamente assumida ao longo da História e constituem processos em permanente construção e aferição, tendo em vista a criação de uma sociedade mais justa e harmoniosa, onde o espaço público se possa constituir como pertença de todos.

Todavia, para além da questão historicamente mais relevante da necessidade de se garantir a independência do Estado face às Igrejas e demais comunidades religiosas, a Laicidade também defende a máxima liberdade de expressão e difusão de todas as opções filosóficas e ideológicas que não visem destruir as liberdades.

2. A República Portuguesa e a Laicidade

A Constituição da República Portuguesa estabelece claramente um regime de separação entre o Estado e as igrejas ou outras comunidades religiosas; porém, subsistem em Portugal práticas e normas legislativas que subvertem decisivamente o princípio republicano da Laicidade do Estado. Concretamente:

  • A manutenção, sob muitos aspectos inconstitucional, da vigência da Concordata estabelecida em 1940 entre o Estado Português e a Santa Sé, e o processo de negociação recentemente promovido tendo em vista perpetuar, através de novo acordo, idêntico regime concordatário
  • A existência de uma Lei da Liberdade Religiosa que, pelo conjunto de privilégios que reconhece à Igreja Católica e que se propõe estender, de forma desigual, a algumas das demais comunidades confessionais presentes no país, cria inevitavelmente situações de discriminação entre os cidadãos (2);
  • A perpetuação de inúmeras práticas decorrentes de uma tradição clericalista que, estabelecida ao longo de séculos de sujeição confessional do Estado Português à Igreja Católica, têm fortíssima expressão aos mais diversos níveis da vivência social colectiva.

3. O facto religioso na sociedade portuguesa contemporânea

Contrariamente a uma ideia que prevalece, a vivência quotidiana do facto religioso na sociedade portuguesa contemporânea é muito diferente daquela que marcou o país fechado anterior ao 25 de Abril de 1974. Verificam-se três grandes tendências:

  • Uma expressiva secularização de usos e costumes, com clara tradução em múltiplos aspectos da vida social – por exemplo, no acréscimo expressivo dos casamentos celebrados fora do ritual católico (actualmente dois em cada cinco dos casamentos celebrados anualmente (3)) e na adopção, também crescente, de regimes de união de facto;
  • Uma clara regressão do número de católicos praticantes reclamados pela própria Igreja Católica – apenas um milhão e novecentos mil, ou seja, no máximo, 18% da população total em 2001, segundo a contagem promovida pela Conferência Episcopal Portuguesa em Março de 2001 (4)
  • Uma crescente diversificação das opções religiosas e não religiosas disponíveis que se verifica, quer no incremento da mobilidade confessional ou no puro abandono de práticas religiosas, quer em resultado da presença de comunidades imigrantes com práticas religiosas anteriormente inexpressivas ou mesmo inexistentes no país.

4. A oportunidade da constituição da Associação República e Laicidade

A necessidade da institucionalização de uma corrente de opinião que pugne pela clarificação e aprofundamento do regime republicano e, muito particularmente, pela implementação da laicidade, impõe-se, assim, como oportuna e mesmo necessária, quer para sustentar um discurso humanista, optimista e moderno imprescindível ao progresso do país, quer para constituir um contraponto à afirmação organizada das estruturas institucionais de algumas corporações religiosas junto da opinião pública.

A Associação República e Laicidade deverá portanto dar voz a todos aqueles que – independentemente de se identificarem ou não com qualquer confissão religiosa – entendem que, nas sociedades contemporâneas, a religião não pode constituir, nem motivo de divisão e conflito entre os homens, nem motivo de privilégio ou discriminação de cidadãos, nem fundamento dogmático para qualquer norma de conduta de aplicação universal.

5. Prioridades e linhas de acção

A Associação República e Laicidade defenderá o carácter republicano do regime português e opor-se-á a qualquer alteração da garantia constitucional que salvaguarda a forma republicana do Estado.

A actuação da Associação República e Laicidade deverá assim orientar-se no sentido de aprofundar a Laicidade da República Portuguesa, pugnando pela clara separação entre o Estado Português e a Igreja Católica ou qualquer outra organização de cariz religioso, ideológico ou filosófico, advogando a total e efectiva liberdade de consciência de todos os cidadãos e repudiando toda e qualquer discriminação ou privilégio que decorra da pertença de um cidadão a um grupo confessional ou ideológico, da sua origem regional ou local, da sua etnia, da sua origem social, da sua ascendência familiar, da sua orientação sexual ou do seu sexo (cf. “Estatutos”).

Desse modo, a Associação República e Laicidade será frontalmente contra a existência de qualquer acordo concordatário entre Portugal e a Santa Sé, devido ao regime de privilégios que um tal tratado inevitavelmente confere a uma confissão específica e aos seus membros dentro da ordem jurídica portuguesa, tal como se oporá à “Lei da Liberdade Religiosa”, que, para além das discriminações que cria, também veio introduzir um desvio comunitarista no ordenamento político da nossa sociedade (5)

A Associação República e Laicidade afirmará também uma clara posição contra o ensino confessional na escola pública – pago com dinheiro público ou não – e, por maioria de razão, opor-se-à a qualquer prática de rituais religiosos nesse mesmo espaço.

Na mesma linha, a Associação República e Laicidade pugnará igualmente contra a existência de símbolos religiosos nos estabelecimentos públicos (escolas, hospitais, tribunais, câmaras municipais, etc.).

A Associação República e Laicidade bater-se-á contra qualquer concepção corporativista ou qualquer dominação clerical das instituições e das políticas da União Europeia, tais como o reconhecimento político do trato entre as instâncias europeias e as comunidades religiosas organizadas, ou posições tendentes a excluir ou incluir, por critérios de religião, países candidatos a integrar a União.

A Associação República e Laicidade bater-se-á contra a imposição de concepções de origem dogmática em políticas públicas respeitantes à bioética, à investigação científica, e à família, e lutará por uma concepção de cidadania baseada no indivíduo, e na sua liberdade de escolha e decisão em matérias de consciência, de acordo com os valores humanistas.

NOTAS

  1. Concepção que teve as suas primeiras concretizações efectivas no final do século XVIII, nos regimes instaurados após a Independência dos E.U.A e a Revolução Francesa e que assentou no pensamento filosófico e na prática política de homens como John Locke, Montesquieu, Thomas Paine, Condorcet, Voltaire, David Hume, Thomas Jefferson, Benjamim Franklin, James Madison, etc…
  2. São excluídos da sua aplicação, designadamente, quer os católicos – sujeitos a um regime de privilégio próprio resultante da Concordata – quer todos os que não professam qualquer religião e que são simplesmente ignorados naquele diploma legal.
  3. A percentagem de casamentos civis sem cerimónia religiosa em 2001 foi de 37.5%, um nítido progresso relativamente a 2000 (35.2%), e que mais que duplica a percentagem de 1973 (17.8%).
  4. Número que resulta da contagem de pessoas que frequentaram a missa no fim de semana de 10-11 de Março de 2001 e que, além de não ser controlado por qualquer mecanismo que evite múltiplas contagens, também inclui as crianças maiores de seis anos. Este número corresponde a um decréscimo de 310 mil católicos praticantes durante o decénio 1991-2001.
  5. A Lei da Liberdade Religiosa deveria ser revogada, pois reconhece ao Estado competência em matéria que deveria relevar unicamente da consciência de cada cidadão, introduz uma autêntica hierarquização qualitativa das confissões religiosas e confunde deliberadamente a relação entre o cidadão e o Estado com a relação entre o crente e a sua comunidade religiosa, nomeadamente ao possibilitar a existência de um «imposto de igreja» a colectar pelo Estado.