Portugal é uma comunidade política organizada por uma Constituição tendencialmente laica que garante a liberdade de consciência a todos os cidadãos. A querer respeitar as opções das várias comunidades religiosas e dos indivíduos sem prática religiosa, a República não pode adoptar uma religião nem promover cerimónias de culto.
Todavia, o Ministério da Educação justificou esta semana em nota oficial a promoção por agrupamentos escolares de cerimónias pascais católicas em escolas públicas, alegando os «direitos dos pais na educação dos filhos» e a «autonomia» escolar. O direito dos pais a educarem religiosamente os seus filhos menores é respeitável, mas não é um direito que o Estado possa promover: deve limitar-se a garanti-lo. Não é por acaso que a Constituição actual garante aos cidadãos a liberdade de criarem associações religiosas, praticarem actos de culto e divulgarem informação religiosa, mas não onera o Estado com a obrigação de apoiar a educação religiosa (ao contrário do que acontece com o acesso à cultura ou a prática do desporto, direitos que o Estado está obrigado a promover e apoiar). A liberdade religiosa, em particular convocar ou financiar missas, é um direito que os cidadãos felizmente têm, mas que deve ser negado ao Estado, incluindo às suas escolas e universidades, sob risco de Portugal voltar a ter uma religião oficial de facto. Quanto à autonomia escolar, esta não pode legitimar privações locais de direitos tão fundamentais como a liberdade de consciência, nem pode provocar as desigualdades entre cidadãos inevitáveis nestas situações, em que o privilégio católico se acentua remetendo ao isolamento os alunos ou docentes que resistam às pressões para participar. A laicidade da escola pública tem de ser um direito de que os cidadãos usufruam a nível nacional, e que não pode ser suspenso a nível local.
Acrescente-se que a liberdade de consciência sofre um atentado particularmente grave quando o Ministério da Educação encoraja que docentes, funcionários e encarregados de educação da comunidade escolar sejam questionados sobre a sua presença em cerimónias religiosas, numa clara violação da sua privacidade – quando afinal é um dever do próprio Estado garantir que ninguém seja inquirido sobre essa matéria.
Dentro de uma ou duas décadas, é possível que haja escolas ou agrupamentos escolares de maioria muçulmana em Portugal, como aliás está perto de acontecer em alguns países europeus. Nesse dia, no bloco clerical PS-PSD-CDS que esta semana defendeu politicamente as cerimónias acima mencionadas, muitos poderão descobrir que afinal preferem a laicidade escolar à realização de cerimónias islâmicas em escolas públicas. A Associação República e Laicidade manterá a sua coerência e continuará a defender que nenhuma comunidade religiosa, mesmo que maioritária a nível nacional ou a nível local, instrumentalize a escola pública.
(Ricardo Alves, Associação República e Laicidade, Expresso, 13/4/2019)