Quando, há exactamente 10 anos, o carismático João Paulo II visitou Portugal, encontrou um país que tinha acabado de recusar a despenalização da interrupção voluntária da gravidez e onde o conceito de laicidade era ainda um conceito nebuloso, perdido num artigo 41º da Constituição a que poucos ousavam referir.
A evolução nesta última década da sociedade portuguesa alterou drasticamente a “Terra de Santa Maria”, expressão com que Bento XVI se referiu recentemente a Portugal. Portugal é um país cada vez mais secular, com igrejas que a própria hieraquia reconheceu cada vez mais vazias, com uma lei de liberdade religiosa que estipula que “o Estado não adopta qualquer religião” e que “nos actos oficiais (…) será respeitado o princípio da não confessionalidade”. Nos últimos anos, Portugal legislou sobre uniões de facto, descriminalizou o aborto e acabou com o divórcio litigioso e, mais recentemente, o Parlamento aprovou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, cuja publicação aguarda apenas a promulgação por um presidente da República que parece não se ter apercebido da nova realidade social.
A autonomização da sociedade civil em relação à religião institucionalizada, muito acelerada nos últimos anos, não tem sido aceite de bom grado pela hierarquia da Igreja que não parece disposta a aceitar o papel, marginal quando comparado com a influência profunda do passado, que a laicidade lhe reserva.
Esta influência de séculos só foi brevemente interrompida com a implantação da 1ª República cujo centenário celebramos este ano. Foi com a República que se iniciou um turbulento mas muito urgente processo de laicização do “mui católico” Portugal. Foi com a República que foi anulado o juramento religioso nos tribunais e em outros actos oficiais. Foi com a República que os registos, como o nascimento, o casamento e o óbito, até aqui efectuados na paróquia, passaram para o Registo Civil. Legislou-se sobre o divórcio, a família e o regime de protecção aos filhos “ilegítimos”.
Foi neste contexto de laicização que surge o fenómeno Fátima, do qual o cardeal Cerejeira disse ter sido “Fátima que se impôs à Igreja”. Na realidade, o que o cardeal queria dizer é que Fátima foi fundamental na restauração da influência da Igreja na sociedade e na política nacionais, permitindo uma matriz identitária que se traduziu muitos anos nos três f’s que caracterizavam Portugal “Fátima, Futebol e Fado”.
A insistência da hierarquia católica em trazer o Papa a Fátima no ano em que se celebra a implantação da República é assim tudo menos inocente. Em particular depois de no dia 4 de Maio, numa conferência de imprensa, o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, ter sugerido que a crescente secularização da Europa será o tema que dominará as alocuções papais durante a visita, sugestão que foi transformada quase em certeza na entrevista à Rádio Vaticana de Jorge Ortiga, arcebispo de Braga e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Inocência terá sido talvez a aquiescência estatal a esta visita extemporânea que, pelo menos na sua vertente de “visita de Estado”, podia e deveria ter adiada para 2011, sem qualquer conflito diplomático. Esse adiamento negociado permitiria indicar que a Igreja mantém uma importância, histórica e actual, que ninguém nega mas que hoje em dia Portugal é um país laico que não reconhece a preponderância que a Igreja teve, ao longo de séculos, em questões éticas e sociais e em decisões políticas e económicas da sociedade portuguesa.
Há dois anos, Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa e porta-voz do episcopado, afirmava que «depois do referendo sobre a IVG a sociedade portuguesa pensou que era laica». O timing desta vista papal quer corrigir o que a Igreja considera ser a desatenção da sociedade nacional. E embora o Estado português pareça estar a cumprir um acto de contrição por esse “pecado”, desdobrando-se em tolerâncias de ponto e preparativos completamente desajustados, cabe a nós cidadãos mostrar que somos mesmo laicos.
(Palmira F. Silva, Diário de Notícias online, 10 de Maio de 2010)