Bem prega Frei Tomás

Quando, em Setembro de 2006, Bento XVI visitou a Baviera e proferiu a famosa palestra de Ratisbona, afirmou que o Ocidente está ferido de morte, mais concretamente que «sofre de patologias mortais da religião e da razão» entre elas «um certo tipo de razão que exclui Deus da visão do homem». Hoje, no início de um encontro do papa com os bispos, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa explicou que entre as patologias nacionais também figura o ateísmo, a tal exclusão de Deus, problema grave só comparado aos «atropelos à vida e à instituição familiar». Estes últimos «atropelos» foram o prato forte da tarde de hoje em Fátima, com Bento XVI a criticar fortemente o aborto e casamento de pessoas do mesmo sexo, classificados como «alguns dos mais insidiosos e perigosos desafios que hoje se colocam ao bem comum».

O ateísmo, o maior drama da humanidade, explicou o cardeal patriarca na sua homilia natalícia em 2007, parece preocupar nos últimos anos as cúpulas eclesiásticas portuguesas, tanto que o outro cardeal português, Saraiva Martins, em Maio de 2008, presidiu em Fátima à «peregrinação contra o ateísmo na Europa». Por isso, não me espantei que Jorge Ortiga o tenha incluído no quadro de problemas nacionais do momento, bem mais grave que a crise que não lhe mereceu sequer uma referência.

Considerei no entanto curioso que o tema das conversas papais de hoje se debruçasse tanto sobre os pecados dos outros, algo sobre o qual estamos todos fartos de ouvir o Papa, sempre no mesmo tom. Em particular se pensarmos que apenas agora os crimes da Igreja mereceram a Bento XVI uma reflexão diferente das que nos habituámos ouvir das cúpulas do Vaticano ao longo da década que dura o escândalo do abuso sexual de menores que abala a Igreja. Todos os católicos que tenho lido se manifestaram muito agradados com o me(i)a culpa de Bento XVI. Todos eles também parecem considerar que o acto de contrição, pelos «pecados» dos padres abusadores não pelo encobrimento dos criminosos pela hierarquia da Igreja, é q.b. para colocar uma pedra em cima do assunto e que é um ataque à Igreja não o fazer. Talvez por isso, hoje, num assomo do que Anselmo Borges chamou recentemente hipocrisia moralista, os católicos presentes não tiveram pejos em aplaudir energicamente a condenação pelo seu Papa de comportamentos alheios que não lhes dizem, nem ao Papa, respeito.

Ou quiçá, seja uma confusão, pouco saudável no século XXI, entre crime e pecado que tenha propiciado as palavras do Papa e as palmas do seu rebanho. A esta confusão entre crime e pecado, querendo fazer passar por pecado o que é crime e por crime o que deveria ser apenas pecado (para os crentes nessas coisas), soma-se a confusão entre pena e penitência. É certo que as penas foram durante séculos as penitências ordenadas pela Igreja para a remissão dos pecados. Mas não faz sentido ouvir o mesmo Papa que tanto apelou ao amor cristão para esquecer e perdoar os crimes cometidos contra crianças de todo o mundo, o mesmo que reconheceu em relação aos crimes da Igreja que esta tem uma “profunda necessidade” de “aprender o perdão e a necessidade da justiça”, assumindo que a penitência releva estes crimes abomináveis, apelar a esse mesmo amor cristão para as meritórias lutas de ilegalizar ou criminalizar os «pecados» alheios.


(Palmira F. Silva, Diário de Notícias online, 13 de Maio de 2010)