O espírito laico e o espírito livre pensador


Sebastião Magalhães Lima

Ao falar do Portugal laico e livre pensador, convém estabelecer uma distinção entre o espírito laico e o espírito racionalista, como convém estabelecer uma distinção entre anticlericalismo e livre pensamento.

Ser laico, segundo as belas palavras de Lavisse, não é limitar ao horizonte visível o pensamento humano, nem interditar ao homem o sonho e a busca perpétua de Deus, é reivindicar para a vida presente o esforço do dever.

Não é querer violentar, não é desprezar as consciências ainda detidas no encanto das velhas crenças, é recusar às religiões que passam o direito de governar a humanidade que permanece.

Não é de modo algum odiar esta ou aquela Igreja ou todas as Igrejas em conjunto, é combater o espírito de ódio que sopra das religiões e que foi causa de tantas violências, mortandades e ruínas.

Ser laico, não é de modo algum consentir a submissão da razão ao dogma imutável, nem a abdicação do espírito humano perante o incompreensível; é não tomar partido de nenhuma ignorância.

É acreditar que a vida vale a pena ser vivida: amar esta vida, recusar a definição da terra “Vale de lágrimas”, não admitir que as lágrimas sejam necessárias e benéficas, nem que o sofrimento seja providencial; é não tomar partido de nenhuma miséria.

Não é de modo algum remeter a um juiz com assento para além da vida o cuidado de saciar os que têm fome, de dar de beber aos que têm sede, de reparar as injustiças e de consolar os que choram: é dar batalha ao mal em nome da Justiça.

O racionalismo aceita a neutralidade em matéria religiosa, como o sistema laico. Mas tem uma concepção superior, filosófica, de todas as noções sociais, tais como as de família, de pátria e de humanidade, dando-lhes um critério libertador e emancipador.

O anticlericalismo difere do livre pensamento em que não tem sobretudo mais que um único objectivo, o de combater o clericalismo, enquanto o livre pensamento, de acordo com a definição do nosso amigo Ferdinand Buisson, “não é uma doutrina, mas um método; não depende do que se afirma ou do que se nega, mas unicamente do modo como se afirma ou se nega. O Livre Pensamento não impõe nem exclui nenhuma opinião, nenhum sistema; exige que cada um tome empenho em formar as suas convicções, após exame pessoal, a partir da sua consciência e da sua razão. Aquele que tomou e manteve este empenho é livre pensador, quaisquer que sejam as conclusões a que chegue. Teísmo ou ateísmo, espiritualismo ou materialismo, dualismo ou monismo têm igual direito de cidadania no livre pensamento. É necessário que se possa, seguindo as palavras de Séailles, crer em Deus sem ser tratado de imbecil, ou chamar-se ateu sem passar por um celerado.

O anticlerical pode ser um sectário, o que não deve acontecer ao livre pensador. Enquanto o anticlerical professa uma doutrina, fora da qual não há salvação, o livre pensador não faz mais do que seguir uma ideia ou um raciocínio.

Ele não quer substituir um dogma por outro dogma, nem uma religião por outra religião. O que ele quer e procura, é libertar os espíritos e emancipar as consciências. E é sobre esta base que nós, livres pensadores portugueses, nos apoiámos para fazer uma revolução que nos conduziu a um regime novo de Direito, Moral e Justiça.

O objectivo do Livre Pensamento é a procura da Verdade pela Ciência, a conquista da liberdade pelo direito, da Igualdade pela Justiça, da harmonia social pela fraternidade. Noutros termos, o Livre Pensamento é simultaneamente um método político, moral e económico, porque seria ilógico proclamar a emancipação política e não proclamar ao mesmo tempo a emancipação moral e económica.

O Livre Pensamento é uma obra internacional no sentido em que representa uma obra de justiça e emancipação. A emancipação do indivíduo corresponde logicamente à emancipação da família; à emancipação da família, a emancipação da sociedade; à emancipação da sociedade, a emancipação dos povos; à emancipação dos povos, a emancipação da humanidade. Nestes termos se concretizam e se resumem todas as aspirações, todas as tendências do nosso tempo.


Magalhães Lima

(excerto da conferência «O Portugal Livre Pensador: da Monarquia Clerical à República laica», proferida em Lausane, em 9 de Novembro de 1911, no Congresso da Internacional do Livre Pensamento; tradução do francês de Ricardo Alves)