Em defesa da lei de Separação


Afonso Costa

As rebeliões tentadas contra a República tiveram sempre por substractum o fanatismo intolerante dos clericais, e por objectivo o combate à Lei da Separação, como se pudessem esquecer-se as lições da História, e para nada valessem, na formação do carácter nacional, as lutas que o Estado sempre sustentou com o clero, e, sobretudo, essa página forte de autonomia do poder político que foi o período da administração do Marquês de Pombal, e esse quadro, ainda mais brilhante, das conquistas liberais de 1834. Esquecidos de tudo isto, os paladinos da Coroa tomaram por condutores os exploradores da Cruz, combatendo uns e outros a República e a Lei, mas desintegrados das aspirações da consciência colectiva, fizeram a mais aviltante e miseranda figura que a História tem registado através de todos os tempos.

Esses movimentos de ódio, como as criticas sem nexo, contrastando com a marcha segura do novo regime, só deram a impressão do intolerantismo e do sectarismo dos adversários, do mesmo passo que documentariam a sua irremediável impotência. Eles ousam falar em liberdade, quando se encontram cingidos, amarrados ao Syllabus, publicado pela encíclica Quanta cura, de 8 de Dezembro de 1864, e segundo a qual a liberdade de consciência e de religião deve ser considerada como um delírio, ou como a exacerbação da liberdade de corrupção!

Liberdade, sim, querem-na, mas para fazer mal, para inutilizar uma Lei, que tinha sido imposta unicamente pelo Partido Republicano, que desde longe era exigida pela conveniência pública, que todos os espíritos desembaraçados consideravam indispensável para a fundação da verdadeira liberdade. Apresentando-se assim com tanta má-fé e em tamanha hostilidade à própria República, os ultramontanos quase não podem reconhecer-se como beligerantes, e nas condições em que nos aparecem ao abrir-se a discussão da Lei, decerto que não merecem que os tomemos como combatentes. Quantas vezes a República, desde o Governo Provisório, os desafiou a que formulassem as suas queixas, a que indicassem as reformas, alterações ou modificações que julgassem necessárias no novo regime dos cultos? Pergunto: onde está, pois, a nossa intolerância, onde está o desejo deles de desenvolverem apenas, por meios honestos, a propaganda da sua religião? Sempre a traição disfarçada com uma máscara de hipocrisia! Logo que assumi as funções de Ministro da Justiça, convidei os bispos a exprimirem em documentos os seus desideratos acerca do modo como deveria decretar-se a separação, cujo princípio fora logo votado unanimemente pelo Conselho de Ministros do Governo Provisório, em correspondência à enormidade das aspirações dos cidadãos republicanos, de todos os portugueses.

Fizeram os prelados, depois de comigo conferenciarem em comum, a sua exposição sobre o assunto, com as reservas do costume, é verdade, mas indicando algumas medidas que era possível atender, a par de certas reclamações inadmissíveis, sobretudo na parte material, em que desejavam prevalecesse a tese absurda da propriedade e livre disposição pela Igreja dos bens até então afectos ao culto e aos seus ministros; mas, quando a Lei apareceu, os colaboradores desse documento, digno, pelo menos, de controvérsia, tinham-se transformado em autores e signatários da pastoral colectiva, em defensores da Companhia de Jesus, em insultadores da Lei do Divórcio, em mentores ou iniciadores duma campanha de revolta contra o Estado, a República e as suas leis, verdadeira campanha de ultramontanos (apoiados) e, por isso, não admira que se fechassem no seu rancor e não quisessem responder.

O Governo Provisório encontrou-se assim em frente duma perfeita cabala de associados duma obra de reacção, tomando como ponto de partida o ódio a um diploma, que havia sido escrito para dar satisfação aos verdadeiros crentes, como aos não religiosos, pelo estabelecimento, dentro do País, do preceito supremo da liberdade, na sua forma mais delicada e profícua – a liberdade de consciência.

Eles querem que se lhes entreguem todos os bens móveis e imóveis anteriores à República. Eles querem que a República faça o que Afonso II não fez em Coimbra, quando estava, ainda, sujeito ao tributo de Roma. Eles querem que lhes dêmos o que D. Dinis lhes recusou, obstinadamente, em leis sucessivas, e que os primeiros reis, no princípio da Monarquia, não tiveram coragem de lhes dar. Querem que lhes dêem o que toda a legislação pombalina e constitucional não ousou conceder-lhes: nem a propriedade dos móveis e das jóias da Igreja.

Fosse dos padres, ou da Igreja, nunca, em Portugal, isso sucedeu; porque mesmo os quartéis, quando extintos, não ficavam com direito de levar os armamentos.

Nunca, em Portugal, a propriedade imóvel foi da Igreja. Nunca em Portugal isso sucedeu.

Tiveram apenas o uso e administração.

Querem a facilidade de divulgar o ensino religioso, indo dentro das escolas ensinar a religião aos alunos que a queiram receber.

Querem que esse ensino seja ministrado dentro das escolas.

Querem a ausência de toda a fiscalização na preparação dos padres nos seus seminários, para poderem fazer, por meio de exercícios espirituais, por meio de toda essa complicada máquina que fora posta em acção pela Companhia de Jesus, uma milícia nova, ultramontana e jesuítica.

Queriam que fizéssemos desaparecer todas as medidas de polícia, mas não se atrevem a afirmar que consideram a Igreja como devendo dominar o Estado, não ousam exprimir os preceitos teocráticos que dominaram a vida da Igreja durante toda a Idade Média. Tiram-lhe, porém, as consequências: não querem polícia, não querem nenhuma intervenção; quer dizer, dentro do território português, podia existir um organismo influindo sobre milhares de criaturas, estando absolutamente fora de toda a acção preventiva e coordenadora do Estado!

Queriam o direito de estabelecer, em nome de Roma, que não é nenhuma potência estrangeira e que não é, sobretudo, nenhum organismo nacional, leis que vigorassem e se executassem dentro do território português, sem que o Estado disso se aperceba, e confiando eles na superstição existente e na ignorância da massa popular que tanto ajudaram a manter no velho regime!

O que se passou em Portugal ao tratar-se de pôr em execução o capítulo referente a corporações e entidades encarregadas do culto foi precisamente o que se passou com as disposições idênticas da lei francesa da separação, dando a sua execução lugar a reclamações por parte da Santa Sé, julgando assim ferir a República.

O Governo Português quis encarregar as Misericórdias e as irmandades do culto, mas isso não foi aceite, por a Cúria entender que seria chamar entidades estranhas a intervir em causas que só à hierarquia religiosa pertencia reger.

As intenções da Lei foram deturpadas por má-fé, como já o haviam sido em França. A intenção da Lei era apenas a de criar uma corporação que recebesse os donativos com que se devia pagar ao padre e não cultuais com livres-pensadores, embora a omnipotência do Governo Provisório e a obediência aos administradores de concelho permitisse que, em oito dias, elas estivessem constituídas com republicanos. Mas não serão as cultuais quem irá destruir, como diz o ultramontanismo, a hierarquia eclesiástica. O que se não compreende é que tome conta do culto quem com o culto se não interessa.

Se a República tivesse querido esmagar a Igreja, não necessitaria de recorrer a novas leis; bastavam-lhe as da Monarquia, que produziram uma crise ministerial e quase uma sublevação em palácio, quando o honrado magistrado que se chamou Francisco José de Medeiros lhes quis dar a aplicação rigorosa.

No capítulo IV da Lei, trata-se da propriedade e encargos dos edifícios e bens chamados eclesiásticos. Neste ponto a República apenas se limitou a executar o espírito das leis constitucionais de Mouzinho e até mesmo as contemporizou um pouco.

Nós limitámo-nos a imitar essas ordens. Além disso, havia os títulos de dívida pública.

Nós podíamos dar a esses bens o destino que fosse justo, porque eram do Estado, e podíamos dispor deles.

Eles foram destinados às pensões aos párocos, à assistência e à instrução.

Nós podíamos desafiar os clericais a trazer para aqui os textos sagrados e a discutir o destino que demos a esses bens.

Era boa essa discussão, para que o povo visse que a Lei da Separação dava melhor destino aos bens clericais que lhe estavam dando os curas das aldeias, e sobretudo os bispos, e essa obra de benefícios dos bispos há-de ser posta em comparação com a obra da República.

Não tínhamos nada que pedir, ou conselho ou indicações, aos padres, em matéria de aplicação desses bens, que nunca foram deles, e que foram sempre do Estado. Eles só estavam em uso nas mãos dos padres por intermédio de um município, ou uma junta de paróquia.

A Lei da Separação não podia ficar aquém daquilo que escreveu, e, tendo plena liberdade de dispor dos bens como se quisesse, apenas lhe deu a aplicação que propriamente tinha.

Finalmente, o penúltimo capítulo trata das pensões aos párocos. A pensão ao pároco foi considerada por uns como iníqua, que eram aqueles que entendiam que a Igreja existia em Portugal por maioria consciente do povo e que, uma vez separada do Estado, nada mais este tinha que reclamar dela; e, por outros, considerada como tentativa de suborno por parte do Estado, como uma tentativa de sugestão a favor da República e da Lei da Separação.

A pensão foi estabelecida como um direito, que saiu da própria natureza do contrato existente entre o pároco e o Estado, pois que não havia párocos em Portugal senão com a autoridade, com o despacho e com a investidura do Estado. As suas nomeações eram vitalícias, e o pároco tinha adquirido direitos e usufruía vantagens inerentes ao seu lugar. Neste ponto, foi Portugal muito além da França, sendo nós um país pobre e arruinado e a França um país rico. Ao passo que as pensões em França eram exíguas, as nossas são, em regra, superiores à média das pensões de aposentação, que não chegam a 300 escudos. Os direitos estão adquiridos e o Parlamento não pode revogar essa disposição. Uma lei posterior não pode alterar um direito adquirido por uma lei anterior. Qualquer modificação que se fizesse, na lei só tinha efeito futuro.

Levou-se a benevolência até ao ponto de estender as pensões àqueles que eram apenas párocos encomendados e não tinham intervenção do Estado para a sua nomeação, como os serventuários de igrejas e capelas. Quer dizer: a todos que viviam dependentes da existência de uma igreja do Estado, a todos se ofereceu, não como esmola mas como reconhecimento dum direito, uma recompensa material. Vieram reclamar cerca de 700 párocos e 500 serventuários. Não o fizeram outros. Mas uma novidade posso dar à Câmara. Os que não requereram as pensões, vieram apressadamente pedir que os inscrevessem como candidatos a pensões de aposentação.


Afonso Costa

(excerto do discurso proferido em 10 de Março de 1914, na Assembleia Nacional; transcrição de Alexandre Andrade)